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Por Ithyara Borges e Emelly Alves | Ilustração: Jota A

Os quase seis mil quilômetros que separam a capital Caracas, na Venezuela, e Teresina, no Piauí, parecem, também, representar a distância entre os indígenas que para cá migraram e a dignidade que eles mereciam ter. Fugidos de uma crise social, política e econômica que assolava o país em 2019, os primeiros grupos de venezuelanos chegaram a Teresina em maio daquele ano. A maioria deles composto de muitas mulheres e crianças sem quaisquer condições, em situação de vulnerabilidade, mas em busca de uma vida melhor. Ou pelo menos com expectativas sobre isto.

Hoje, na capital do Piauí estão abrigadas cerca de 70 famílias indígenas, cerca de 300 venezuelanos oriundos do litoral da Venezuela, principalmente do Delta do Amacuro – os Warao. Mas, sem trabalho no seu país de origem e sem a menor perspectiva de ingressarem no mercado aqui, os imigrantes vêem as esperanças diminuírem com o passar dos dias. A saída encontrada é encarar o sol escaldante de Teresina para tentarem garantir, pelo menos, as refeições complementares do dia a dia.

Com o apelo, as placas exibidas nos sinais de trânsito mal são lidas pelos motoristas que cruzam as principais avenidas da capital. Mas, de acordo com Yovini Torres, líder de um dos grupos de indígenas venezuelanos, essa atividade tem se tornado a única forma de conseguirem sobreviver.

Grupos se dividem pelas ruas de Teresina para pedirem ajuda. (Foto: Assis Fernandes/ODIA)

“Tem pessoas que são bem atentas com a gente, que respeita, mas também tem quem fale mal de nós. O que nós precisamos é de trabalho porque estamos aqui todos os dias sem fazer nada. Primeiro lá e agora aqui, sem recursos, sem dinheiro. Assim ficamos na dificuldade”, diz o indígena que veio com a esposa e os três filhos.

Yovini Torres afirma que eles tentam aprender com os teresinenses alguma forma de trabalho, principalmente com a cultura local, mas os problemas com a comunicação atrapalham muito o processo. Poucos indígenas venezuelanos sabem falar português, e os que sabem o espanhol possuem grandes dificuldades em entender os piauienses.

Yovini Torres divide o espaço de um abrigo cedido pelo Governo do Estado com outras 23 famílias. (Fotos: Jailson Soares/ODIA)
“Gostaríamos de aprender a fazer alguma coisa, algum curso. Queremos trabalho para conseguirmos viver por nossa própria conta, para que um dia a gente possa sair do abrigo. Não queremos ficar aqui [no abrigo] para sempre, queremos uma casa, queremos ter emprego para cuidar da nossa família. Nós estamos sempre pedindo trabalho, sempre procurando, mas até agora não temos” - yovini torres.

Atualmente, eles são cadastrados no programa de assistência federal e recebem o Auxílio Brasil, além de cestas básicas da Prefeitura de Teresina, que contêm ovo, frango, arroz, e outros itens da alimentação. A distribuição é feita de acordo com a quantidade de membros da família.

Para tentar diminuir os conflitos e as dificuldades de relacionamento interculturais, cursos de português básico para conversação estão sendo planejados pela Secretaria Municipal de Cidadania, Assistência Social e Políticas Integradas (Semcaspi) junto à Secretaria Municipal de Educação (Semec). “Assim, se faz uma porta de entrada através da linguagem para o mercado de trabalho, e nós conseguimos qualificar e capacitar os venezuelanos conforme o perfil de cada um”, diz o secretário da Semcaspi, Allan Cavalcante.

O crescimento da população de indígenas venezuelanos em Teresina parece ter dado uma freada. Segundo o secretário, há meses não há registros de venezuelanos entrando e/ou saindo de Teresina.

Mas, apesar dos números não terem avançado, os principais problemas da imigração podem continuar existindo se não houver políticas assistenciais eficazes: a luta pela sobrevivência e a mendicância. Independente da presença de 300 ou 700 venezuelanos em abrigos de Teresina, as ações, segundo Yovini Torres, precisam ser focadas em dar dignidade ao povo que aqui se instalou, uma vez que garantir direitos básicos é direito humano.

“Nossa intenção era ter uma vida melhor saindo da Venezuela”.
Os primeiros venezuelanos chegaram em Teresina em 2019. (Foto: Assis Fernandes/ODIA)

Crianças em meio ao conflito; heranças histórico-culturais ameaçadas

Vindos de um local onde a agricultura de subsistência e o artesanato são as únicas fontes de renda, os indígenas praticam as coletas nas ruas de Teresina expostos à violência e ao preconceito. Em alguns dias, não é difícil, por exemplo, presenciar mulheres venezuelanas acompanhadas de crianças, e até mesmo de bebês, disputando espaço com os carros e nas portas de lojas e supermercados.

As crianças, que deveriam ser as mais preservadas diante da situação de vulnerabilidade, crescem com a incerteza do destino cultural. Pois, se lá a presença dos menores na prática de mendicância - o que eles denominam de 'coleta' - é um cenário comum, aqui a atividade é vista como crime.

“Isso faz parte da nossa cultura. Lá na Venezuela nós, como indígenas, levamos as crianças para olharem o que estamos fazendo, para eles irem aprendendo. Por isso que sempre levamos eles aqui também. Falam que a gente poderia deixar eles no abrigo, mas se eles ficarem conosco eles estão mais seguros do que ficar lá. Já falaram para gente que não pode aqui no Brasil, é um crime, mas, para nós, não é”, explica o venezuelano Yovini Torres.

Na Venezuela é comum os filhos acompanharem os pais no que eles chamam de coleta. (Foto: Jailson Soares/ODIA)

O Código Penal brasileiro prevê, no Artigo 136, “o crime de maus-tratos quando existe a exposição a perigo da vida ou da saúde de pessoa sob a autoridade, guarda ou vigilância do agente, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina”. Já o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90) descreve em seu Artigo 232 a criminalização da conduta de “submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a vexame ou constrangimento”.

Para o secretário Allan Cavalcante, da Semcaspi, a prática está diretamente atrelada ao preconceito para com os indígenas venezuelanos. “Isso impacta, choca as pessoas ver os venezuelanos com bebezinhos nos sinais, e cria uma rejeição, porque as pessoas não concordam com isso, o que pode gerar esse impasse, essa discriminação”, pontua.

No mês passado, após denúncias, o Conselho Tutelar de Teresina resgatou três crianças venezuelanas (de 01 ano, 08 anos e 10 anos, sendo este deficiente físico) em situação de mendicância na zona Sul de Teresina e encaminhou-as para um abrigo. Elas estavam acompanhadas dos pais no momento da ação.

“Estavam sujas e sendo usadas pelos pais para despertarem nas pessoas aquela comoção para prática da mendicância”, disse o conselheiro Melquisedeque Fernandes, afirmando que os responsáveis já tinham sido notificados anteriormente.

O afastamento entre os membros da família tem sido a medida mais severa adotada pelo o Conselho Tutelar de Teresina para “punir” os pais que levam os filhos para os sinais. Mas, antes do acolhimento nos abrigos para menores, há a advertência aos responsáveis.

(Foto: Jailson Soares/ODIA)

Esta semana, o Tribunal de Justiça do Piauí (TJPI), por meio da I Vara da Infância e da Juventude, expediu uma liminar determinando que as três crianças fossem devolvidas aos pais.

“Aqui tem uma lei, mas nós também temos uma lá e eles têm que respeitar nossa cultura”, cita o líder venezuelano Yovini Torres. O indígena também criticou que as crianças e adolescentes não têm acesso à Educação.

“Não tem escola para nossas crianças ficarem. Acredito que se eles frequentassem as escolas, eles aprenderiam a falar melhor o português e tudo melhoraria. A escola seria um primeiro passo”.

(Foto: Jailson Soares/ODIA)

Para atender esta demanda de Educação, o secretário da Semcaspi disse que a pasta planeja a criação de salas de aulas exclusivas para as crianças e adolescentes venezuelanos. E deu prazo para que as iniciativas saiam do papel: “acreditamos que para o início do ano que vem conseguiremos atingir esse objetivo”, pontua Allan Cavalcante.

O secretário da Semcaspi garante a total assistência das famílias pela Prefeitura de Teresina. (Foto: Assis Fernandes/ODIA)

Nos abrigos, quase não há espaços de lazer para as crianças. O que existem são os Centros de Convivência que realizam atividades específicas para os grupos de venezuelanos, mas de forma geral.

Os abrigos, cedidos pela Secretaria Estadual da Assistência Social (Sasc), possuem água, luz e gás fornecidos gratuitamente; e os venezuelanos são acompanhados pela Assistência Social e Nutricionistas do município.

Aliás, a nutrição é outro ponto cultural divergente, que pode ser considerado como maus-tratos criminalmente aqui no Brasil. Em julho, um bebê venezuelano, de um ano e sete meses, faleceu no Hospital de Urgência de Teresina (HUT) após aproximadamente 30 internado com quadro de desnutrição; e em junho, também deste ano, um bebê morreu em decorrência de uma diarreia. Os casos não são isolados e estão sendo investigados pelo Ministério Público do Piauí.

“Nós somos muito preocupados com a questão da alimentação deles, e trabalhamos essa política de saúde para auxiliar todas essas famílias abrigadas aqui em Teresina. Mas eles são muito resistentes à medicina tradicional. Eles vão primeiro nas práticas que eles têm costumes, com ervas, apostando no curandeirismo. Aí, caso não dê certo, é que eles vão procurar os médicos, mas muitas vezes a situação já está agravada”, explica o secretário Allan Cavalcante.

Segundo a Semcaspi, este ano foram registradas cinco mortes de bebês e/ou crianças venezuelanas em Teresina.

As crianças e jovens venezuelanos poderão contar com salas de aulas exclusivas nas escolas de Teresina. (Foto: Assis Fernandes/ODIA)

Veja quantas crianças têm nos abrigos em Teresina:

Fonte: Semcaspi - Secretaria Municipal de Cidadania, Assistência Social e Políticas Integradas
O Ministério Público do Piauí acompanha o desenvolvimento das ações de acolhimento dos indígenas Warao desde que chegaram ao Piauí. (Foto: Divulgação/Semcaspi)

Acolhimento humanitário é um direito dos refugiados

O Art. 5º da Constituição brasileira garante que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. Para que isso ocorra na prática existe uma atuação conjunta entre o Ministério Público do Piauí (MP-PI) e os órgãos de assistência social para que os refugiados venezuelanos sejam acolhidos de maneira humanitária.

“Ninguém pode substituir o que eles tinham lá, mas podemos ter algo próximo”, é o que diz a promotora de justiça Myrian Lago sobre a presença dos venezuelanos em Teresina.

O trabalho do Ministério Público é integrado, o que significa que existem diversos campos de atuação dentro da questão migratória dos venezuelanos no Piauí. A 49° Promotoria de Direitos Humanos acompanha o desenvolvimento das ações de acolhimento dos indígenas Warao desde que chegaram ao Piauí. Quem explica melhor esse processo é Myrian Lago, titular da Promotoria de Direitos Humanos.

“São tantas questões que perpassam esse acolhimento. É algo muito complexo, com diversos eixos de atuação do Ministério Público e alguns ainda podem surgir. Assim que os indígenas Warao chegaram, nós entramos com um procedimento para organizar a situação e fazer com que todas as entidades e os órgãos responsáveis atuassem de forma conjunta, principalmente a área de assistência social”, destaca.

(Foto: Assis Fernandes/ODIA)

De acordo com Myrian Lago, há muitos órgãos envolvidos nesse processo e o papel do MP-PI é garantir que os direitos do povo Warao sejam respeitados, e que os órgãos responsáveis, principalmente no que diz respeito ao abrigo e à inclusão nos programas assistenciais, cumpram com suas funções.

“Incube aos órgãos da assistência social, como a Semcaspi e a Sasc, realizarem o planejamento de todas as ações a serem desenvolvidas. Com isso, o MP atua quando o órgão público não está cumprindo o que é de lei. Nosso papel é fazer esse acompanhamento. Quando a coisa não está fluindo como deveria, a gente chama, conversa e marca audiência”, pontua a promotora.

Desde a chegada dos povos Warao, a preocupação do MP tem sido cuidar para que eles tenham dignidade como qualquer outro brasileiro. Além de terem sido um dos primeiros grupos a serem vacinados contra a Covid-19, outra medida adotada como parte do projeto nacional de acolhida foi o direito deles se inscreverem no CadÚnico, um instrumento do governo que colhe informações de famílias de baixa renda para inclusão em programas sociais.

(Foto: Divulgação/Semcaspi)

“Nós articulamos isso e todas as famílias que chegaram aqui foram inscritas. Muitos recebem bolsa família ou auxílio emergencial, mesmo estando abrigados. Essas questões são pouco aparentes, mas tudo isso foi articulado. Assim, a maioria deles não iria para o sinal fazer a coleta”, comenta a promotora.

Entretanto, a dificuldade financeira fez com que muitos indígenas voltassem às avenidas para realizarem a “coleta”, por vezes acompanhados de crianças. Segundo Myrian Lago, os casos de mendicância estão sendo acompanhados pelo Ministério Público e, para ela, a adaptação a uma nova cultura é um processo de construção e diálogo permanente.

A dificuldade financeira fez com que muitos indígenas voltassem às ruas de Teresina. (Foto: Assis Fernandes/ODIA)
“Na cultura deles é normal ir para a mendicância com crianças. Lá, eles chamam de coleta e é algo muito comum e aceitável na Venezuela, mas aqui no Brasil não. A atuação do MP não é no sentido de protegê-los, mas fazer entender que aquele procedimento não é admitido. Para ser cidadão brasileiro, é preciso cumprir a lei que existe para cada área”.

Além deste ponto, a promotoria também está acompanhando com cuidado os casos de óbitos de crianças venezuelanas que ocorreram em razão de pneumonia e as outras duas mortes que podem ter se dado por desnutrição. Com relação a isso, o MP-PI pediu uma avaliação nutricional dos alimentos e da água, que podem ou não estar contaminados.

“Estamos aguardando todos os laudos da equipe de peritos e a partir daí iremos identificar um eventual responsável. Se estes motivos forem, de fato, constatados, os órgãos de assistência social podem ser responsabilizados e os erros deverão ser corrigidos. A questão da água pode ser resolvida imediatamente com a ligação na rede geral, por exemplo. As caixas d'água podem ser limpas, os filtros podem ser trocados. Se a alimentação for considerada insuficiente ou inadequada, é possível trocar para a quantidade e qualidade correta”, explica a promotora de justiça Myrian Lago.

Os alimentos e a água dos abrigos estão sendo analisados pelo MP-PI. (Foto: Divulgação/Semcaspi)

Caso a Semcaspi não cumpra com as adaptações no prazo correto, o MP-PI poderá acionar o órgão judicialmente. “Eu sempre parto da estratégia de negociação e de diálogo, mas se não for alcançado um diálogo em pouco tempo, que nesse caso precisa ser um prazo pequeno, sobretudo porque envolve crianças e idosos, é preciso judicializar”.

Outra questão importante que é fiscalizada pela promotoria de Direitos Humanos é em relação a infraestrutura dos abrigos. Desde que os indígenas Warao chegaram, os espaços de convivência receberam adequações para que fosse possível o acolhimento. Mas, devido à deterioração de alguns abrigos, que ocorreu por conta do grande número de pessoas no mesmo lugar, o MP vem tentando dialogar com a Semec sobre a possibilidade de utilizar um prédio de escola desativado, por ser um espaço mais adequado para o agrupamento das famílias.

(Foto: Divulgação/Semcaspi)

Com atuação direta nas questões fundamentais de direitos humanos, o MP-PI reconhece a importância de trabalhar com o acolhimento humanitário e abraçar as diferenças culturais através da preservação da autonomia do povo Warao, visando um futuro para eles.

O papel do MP-PI é garantir que os direitos do povo Warao sejam respeitados, diz promotora. (Foto: Assis Fernandes/ODIA)

“Uma coisa é certa: eles não querem voltar, pois lá a situação é realmente difícil. Com toda a dificuldade, aqui ainda é melhor para eles. Eles têm as peculiaridades deles, mas são como nós. Aqui aprendemos que é preciso preservar a autonomia. Nós temos o entendimento de que eles não têm que ser tutelados a vida toda, o abrigo é um momento. Mas, para o futuro é preciso ter capacitação, um emprego, um programa habitacional, para que tenham independência”, finaliza a promotora Myrian Lago.

(Foto: Jailson Soares/ODIA)

O futuro? Uma incógnita!

Será possível enxergar um futuro feliz diante da realidade em que os indígenas Warao vivem atualmente? Voltar à pobreza extrema não é uma opção e aqui seus destinos estão condicionados ao acaso. Hoje, eles sonham em ter um emprego e superar as barreiras impostas pela língua e pelos costumes, vivendo de forma digna, longe das ruas e dos abrigos, mas em seu próprio lar.

Esse é um sonho que parece estar cada vez mais distante. Apesar dos esforços para que esse grupo tenha acesso aos seus direitos básicos como cidadãos brasileiros, ainda existem muitas coisas a serem mudadas, como o acesso à Educação à possibilidade de trabalhar e construir independência.

Deixando para trás tudo que conheciam e em busca de uma nova vida, o povo Warao segue tentando manter a sua ancestralidade ao mesmo passo que se adapta à nova vida e à incerteza de um futuro longe do seu país de origem.

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Created By
Ithyara Borges
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