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"Nunca é uma decisão fácil", desabafa jovem sobre o aborto

Enquanto a sociedade civil se mobiliza e escolhe um lado, a mulher que se descobre grávida, num momento considerado por ela inoportuno, permanece sozinha com um filho nos braços ou uma ferida no corpo.

18/08/2018 08:06

Tatiana* ainda se acostumava com a rotina das aulas em uma universidade pública do Piauí e com toda a demanda que a nova etapa exigia. Naquele ano, a aprovação no vestibular e sua inserção no ensino superior, aos 17 anos, seria o grande fato marcante da sua trajetória de vida, não fosse outro acontecimento se sobrepor, muitas vezes, à uma lembrança que ela carrega quando rememora aquele período. Tatiana foi surpreendida com uma gravidez não planejada e se viu diante do não apoio do então namorado, do medo pelo julgamento familiar e da incapacidade financeira de arcar com a criação de uma criança. Em meio a todo um cenário de tensão, ela decidiu pelo aborto, mas constata: “nunca é uma decisão fácil, não importa o motivo que levou a mulher a fazer aquilo”. 

A história da jovem se repete no Brasil diariamente em centenas de outras maneiras, às vezes, com um desfecho ainda mais trágico que o da jovem que, hoje, quase 10 anos depois, consegue relembrar o que passou. Em todo o mundo, mais de 25 milhões de abortos inseguros (45% do total) ocorrem anualmente, segundo estudo da Organização Mundial da Saúde (OMS). Pela legislação brasileira, o aborto só é permitido em caso de estupro, de feto anencéfalo e em casos em que a vida da mãe está em risco. 

Tatiana sabia disso e nem cogitou o aborto em um primeiro momento. A jovem fez relação sem proteção, tomou pílula do dia seguinte, mas um mês depois viu que a menstruação atrasou. “Eu falei pra ele [namorado] que estava preocupada e ele comprou um teste de farmácia que deu positivo. Mesmo assim, eu pedi pra ele que fizéssemos um exame clínico, pra ter certeza da gravidez. Até aquele dia, ainda não falávamos sobre abortar. No dia do exame, o meu namorado não foi, nem no dia de receber o resultado”, relembra. 

Ela conta que foi sugestão dele o aborto. A ideia ainda a assustava e ela se esquivava do debate. “Não lembro quanto tempo depois ele começou a falar do aborto, eu meio que evitava tocar no assunto ainda esperando cair a ficha. Na época, nem eu nem ele tínhamos trabalho, nós dois éramos sustentados pelos nossos pais”, conta. 

O rapaz conseguiu contato com uma enfermeira que fazia o procedimento e indicou a possibilidade “segura” daquilo. Tatiana confessa que, por estar abalada psicologicamente, só hoje consegue perceber que não tinha noção das implicações que surgiriam do aborto, que estava se expondo a um risco de vida. “Ele me falava que era algo bem simples, que a enfermeira ia "aplicar" o remédio em mim e tudo ia dar certo. No começo eu não quis, porque é muito difícil você se desapegar da ideia de que tem uma criança ali crescendo dentro de você, mas com o tempo, eu via que era a única opção que eu tinha. O pai não queria ter e eu não queria criar um filho sozinha e dar mais essa dor de cabeça pra minha mãe, que já tinha criado dois como mãe solo”, pontua. 

“Eu passei a noite toda acordada sentada na cama, imaginando que ia morrer”

Tatiana fez o procedimento com o uso de um medicamento que induz ao aborto. Nos relatos, ela conta que sentiu uma forte cólica e grande sangramento na mesma noite que tomou o medicamento. E as consequências físicas não terminaram ali. Uma semana depois, a jovem continuou sangrando. “Eu estava em casa de boa e comecei a sangrar mais do que o normal. Eu usei um pacote inteiro de absorvente noturno em uma noite. Sangrava muito e sentia muita dor. Eu passei a noite toda acordada sentada na cama, imaginando que ia morrer, mas não podia contar pra minha mãe”, afirma. 

No dia seguinte, o namorado levou um medicamento para hemorragia indicado pela profissional que conduziu o aborto. Tatiana se recuperou fisicamente, mas o processo de trauma psicológico, segundo confessa, até hoje é difícil de lidar. 

Mesmo diante do trauma, do medo e da escolha que não foi fácil ser feita, hoje, aos 28 anos, a jovem defende a descriminalização do aborto no país e fala com a propriedade de quem se considera uma sobrevivente. 

“Não é como se você acordasse e dissesse ‘vou transar sem camisinha pra abortar depois’. É uma experiência muito dolorosa e solitária pra mulher. Pra mim, foi algo muito traumático, eu não conseguia mais olhar pra cara do meu namorado, nós terminamos o namoro e toda criança que eu via na rua eu imaginava que poderia ser o meu filho. Mas apesar de tudo, eu sei que a experiência de ter passado por isso, não se compara a todo o trauma que eu teria em levar a gravidez adiante, com um cara que não queria ter um filho comigo, que provavelmente não ia criar a criança, ter que jogar essa responsabilidade nas costas da minha mãe. Eu não me arrependo do que aconteceu, eu só lamento que tenha sido tão traumático dessa forma. Por isso, eu acredito que a legalização é importante pra que outras mulheres não passem pelo que eu passei, pra que elas tenham um acompanhamento médico e psicológico e não corram risco de morte”, finaliza. 

*Nome fictício utilizado para preservar a identidade da fonte

Pesquisa revela cenário do aborto clandestino em Teresina

O relato contato por Tatiana no início desta reportagem se assemelha a muitos outros que a ginecologista, obstetra e doutora em Ciência da Saúde pela Universidade de Brasília (UNB), Maria das Dores Nunes, ouviu enquanto estudava sobre o fenômeno do aborto clandestino entre adolescentes em Teresina. A pesquisa da médica traça um panorama que alarma e também constata um cenário real na Capital, que assim como no resto do Brasil, segue ignorado dentro da rede de saúde: a falta de legalidade da prática de aborto não impede que as mulheres o façam, como afirma a Pesquisa Nacional do Aborto (PNA). 

“Assim como em outras mulheres, comprovamos que o aborto é praticado entre adolescentes que utilizam o medicamento alcançado de forma clandestina, que não têm informações em que medida um sangramento deve levá-las ao hospital e isso faz com que elas possam ter problemas graves ou até a morte. Temos que entender que restringir o aborto não garante que ele não aconteça. E isso é um dado sério, porque quando uma mulher morre por aborto, são mortes ditas evitáveis”, explica. Maria das Dores Nunes revela em sua pesquisa, feita por meio de entrevistas com adolescentes sobreviventes do aborto e familiares de vítimas mortas por aborto, que o uso de medicamentos, como o Cytotec, foi o método mais utilizado entre as jovens. 

Os dados revelam que 97% delas usaram entre três e seis comprimidos por via oral e/ou vaginal e só procuraram os hospitais com sangramento vaginal e/ou cólicas intensas seis horas após o uso do medicamento. Essa busca ao serviço de saúde aconteceu, em 40% das vezes, com incentivo da mãe, 30% de amigas, 7% de tias e 23% das jovens revelaram terem ido ao hospital sozinhas. 

“Em 10% dos casos houve complicações graves, necessidade de hemotransfusão, infecções graves e uma das adolescentes perdeu o útero. Na entrevista com familiares de meninas que morreram após o aborto, vimos que há um perfil claro, a maioria são jovens negras e pobres”, explica. 

Posicionamento 

Diante da situação, ou seja, desse grave problema de saúde pública no país, a especialista não titubeia na defesa da descriminalização do aborto e o faz destacando a necessidade das pessoas não distorcerem as informações colocadas a partir disso. 

 “Países que têm a prática do aborto legalizada mostram que o índice de aborto não aumenta, pelo contrário. Quando se descriminaliza o aborto, as mulheres passam a ter uma melhor atenção à saúde sexual e reprodutiva, porque os serviços podem se organizar e precisam estar disponíveis a essas mulheres. Acolher a mulher dentro desse contexto do não desejo de uma gravidez é muito melhor, ela precisa fazer uma opção e isso deve ser respeitado por toda a sociedade, especialmente a classe que cuida desta mulher”, afirma. 

Confira a matéria completa na edição de Fim de Semana do Jornal O Dia.


Por: Glenda Uchôa
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