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Pandemia vai trazer transformação nas relações de emprego

Em entrevista exclusiva ao Jornal O Dia, a desembargadora Liana Chaib, avalia os impactos da Medida Provisória que autoriza a redução de salários e a suspensão do contrato de trabalhos

04/05/2020 08:05

Em entrevista exclusiva ao Jornal O Dia, a presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 22ª Região, desembargadora Liana Chaib, avalia os impactos da Medida Provisória que autoriza a redução de salários e a suspensão do contrato de trabalhos. A magistrada também destaca a atuação da Justiça do Trabalho diante do momento de crise causado pelo novo coronavírus e fala sobre os desafios e conquistas de sua gestão, iniciada em 2018.

Por conta da pandemia do novo coronavírus, passou a valer recentemente a MP do Governo Federal que autoriza a redução da jornada de trabalho e do salário, bem como a suspensão do contrato de trabalho (MP936). Como a Justiça do Trabalho avalia essa medida? Qual o impacto dela nas relações trabalhistas?

Temos que ter em mente que estamos diante de um cenário de emergência, provisório, onde a relativização maior: a dignidade humana. Claro que a medida provisória 936 traz inúmeros questionamentos sobre sua constitucionalidade, mas, ao fim e ao cabo, penso que veio em boa hora, preservando empregos e salários. Há que se imaginar que estamos falando de algo maior, estamos falando de garantia de emprego e de salário. É bíblico: “viverás do fruto do seu trabalho.” Sem trabalho não há vida; há degradação humana; há castração de sonhos. Então, sou sempre a favor da manutenção do emprego, porque como diz Gonzaguinha, “um homem sem o seu trabalho não tem honra, sem a sua honra morre, se mata.” Essa é uma das mais puras facetas da dignidade humana. O cenário é incerto, mas também temos que pensar no outro lado que não consegue suportar a carga dos salários e a preservação do emprego, sem que esteja produzindo economicamente. Então, na minha particular opinião, a medida provisória veio em boa hora, dando visibilidade àqueles que se mantinham invisíveis e trazendo um sopro de vida, um rumo àqueles que não conseguem manter seus negócios, por terem que fechar suas portas.


O maior abalo da reforma trabalhista foi no direito coletivo, diz a desembargadora Liana Chaib - Foto: Assis Fernandes/O Dia

Diante do cenário de pandemia e distanciamento social, como fica a atuação do Tribunal Regional do Trabalho do Piauí? O Tribunal vem conseguindo manter a produtividade?

A Justiça, ao final, é um reflexo das mudanças, ela tem que acompanhar as modificações

É impressionante como a Justiça do Trabalho vem se superando diante desse grandioso desafio, pois tem colocado toda a sua sensibilidade e força de trabalho para que possa continuar respondendo aos anseios e pacificação sociais. Quero, de público, agradecer a todos os magistrados da Justiça do Trabalho, que estão fazendo bonito, merecendo todo o reconhecimento da sociedade. É lá, na Justiça do Trabalho que desaguam os conflitos e estamos sempre prontos e hábeis a solucionarmos. O Juiz do trabalho é vocacionado para as causas sociais. Vejam, nesse momento, a Justiça do Trabalho está em tratativas com algumas categorias que já estão na iminência de deflagrar uma greve. A Justiça do Trabalho, mesmo nesse momento, está apta a desempenhar o seu papel, mediando e decidindo, sempre com equilíbrio e tirocínio, questões que se agudizam para ambas as partes. Na verdade, todos os nossos servidores e juízes estão em teletrabalho, não paramos: a casa de cada servidor, de cada juiz, virou um home-office. Estamos trabalhando bem mais, porque agora não temos hora; somos demandados a qualquer hora e qualquer dia. Disponibilizamos no nosso site números de telefones que desviam direto para o celular do servidor, do juiz, enfim. Não há falta de atendimento. Estamos realizando acordos e sessões virtuais e por videoconferência. Recentemente, um juiz do primeiro grau fez acordo em uma ação coletiva onde 66 trabalhadores foram beneficiados, totalizando um repasse de R$ 236.000,00. A justiça não parou e não pode parar. A nossa produtividade vem batendo recordes.

Qual o papel da Justiça do Trabalho nesse momento de crise?

Nesse momento de crise o papel da Justiça do Trabalho é fundamental, porque lá é o último reduto onde as partes procuram a solução para os seus conflitos. Precisa ser uma Justiça que inspira confiança, que decida com bom senso, observando cada caso com um olhar que percebe as particularidades de cada situação. Nesses momentos de crise, o valor do trabalho e do emprego passa a ser prioridade na atuação da Justiça do Trabalho; a manutenção das garantias mínimas de ambiente de trabalho, para que os empregados possam trabalhar com segurança, com EPIs, com formas que não coloquem em risco a saúde do empregado. Enfim, manter um equilíbrio nas relações trabalhistas, sempre voltada, de um lado, para o resgate da dignidade humana, e do outro, para que não haja o sacrifício total das atividades econômicas de um País. Não podemos nos esquecer que por detrás de um capacete, de uma máscara, de um bisturi ou mesmo uma enxada, há sempre um ser humano. Sempre entendi que o melhor lado é o equilíbrio de forças.

Na sua avaliação, o atual momento vivenciado vai trazer mudanças em relação ao futuro da Justiça Trabalhista no Brasil? Avanços ou retrocessos?

É evidente que depois de uma pandemia dessas, de tamanha tragicidade e crueldade, haja uma transformação da sociedade, das relações sociais, econômicas e de emprego. A justiça, ao final, é um reflexo das mudanças; ela tem que acompanhar essas modificações, sob pena de não mais corresponder aos anseios que lhe impõem de “fazer justiça e reequilibrar as desigualdades sociais”. As relações vão mudar, sim, e a Justiça do Trabalho há que acompanhar: veja, já estão aí, o teletrabalho, o coworking, enfim, tantas outras formas de relações que se imporão e que precisarão ser repensadas, legisladas com as devidas garantias e preservação de direitos. Muitas práticas permanecerão e, como disse, penso que o teletrabalho veio para ficar, assim como tantas outras. Temos hoje o disk tudo. As pessoas hoje têm tudo em suas portas, desde a prestação do serviço de cabeleireiro à entrega de toda sorte de serviços. É a economia se reinventando e, com ela, o reinvento de novas relações. Penso que nas adversidades descobrimos as nossas múltiplas capacidades. Acredito também que uma nova sociedade vai surgir, onde as empresas terão um espírito mais humanitário e serão mais solidárias. Mas sempre teremos de um lado o capital e do outro o trabalho; inobstante, essa engrenagem deverá ser azeitada de maneira mais adocicada, imagino. Por fim, penso que a Justiça do Trabalho será a grande protagonista nessa história, com seus juízes altamente qualificados e dotados de uma sensibilidade social, que contribuirá para que não haja retrocessos nas conquistas já consolidadas. Há que se avançar e progredir: esse é o nosso desafio.


Foto: Assis Fernandes/O Dia

Nos últimos anos, as relações trabalhistas passam por mudanças significativas, principalmente após à reforma trabalhista de 2017. Já é possível avaliar os impactos dessas mudanças? A Justiça do Trabalho conseguiu se adaptar à nova realidade?

A reforma trabalhista trouxe muitos impactos nas relações trabalhistas, carreando em seu texto, na minha opinião pessoal, alguns retrocessos, mas também alguns benefícios. O maior abalo foi no direito coletivo, com a prevalência do negociado sobre o legislado, bem como a flexibilização das normas trabalhistas. Outro grande impacto foi o acesso à justiça, que acarretou a redução das demandas, já que impôs, penso que de maneira um pouco cruel, o pagamento de custas e honorários ao reclamante hipossuficiente, que por conta disso, não ingressa na Justiça do Trabalho com medo de perder alguns direitos e, consequentemente, ser condenado no pagamento de honorários advocatícios. Mas a lei é como um quadro, no dizer de Kelsen, comportando interpretações que devem ser feitas dentro de um sistema constitucional e, portanto, cabe à Justiça do Trabalho essa tarefa hermenêutica sobre uma legislação que causou profundas modificações no ordenamento jurídico, alterando, criando ou revogando mais de cem artigos da CLT.

Qual o balanço que a senhora faz de sua gestão à frente do TRT? Avalia que conseguiu cumprir as metas estabelecidas quando assumiu?

A gestão tem sido, desde o seu início, de trabalho intenso e bem planejado em todas as ações realizadas. E com ele, naturalmente, vêm os êxitos. Recentemente, em uma premiação no Tribunal Superior do Trabalho pela informatização de 100% dos nossos processos (selo 100% PJe), o então Presidente do TST, Ministro Brito Pereira, ressaltou que o Trt-pi tem cumprido todas as metas nacionais e ganhado todos os prêmios. “Vocês não perdem um”, disse-me ele. Esse reconhecimento nos deixa orgulhosos do trabalho executado, sobretudo pela finalidade social desse trabalho. Fomos premiados com o Selo Ouro no Prêmio de Metas do CNJ em 2019 e acreditamos que deveríamos ter ganho o selo Diamante, em razão de pontos não computados de uma meta que, na nossa visão, foi cumprida. No relatório Justiça em Números do CNJ, fomos reconhecidos como o TRT mais produtivo do Brasil.

Além do reconhecimento nacional, temos recebido também, com frequência, o reconhecimento local dos representantes da OAB e dos advogados trabalhistas, além de inúmeras manifestações individuais de magistrados, servidores, advogados e partes, sobretudo pelas medidas inovadoras e arrojadas que trouxeram agilidade ao funcionamento das unidades judiciais e administrativas; celeridade na tramitação dos processos; segurança a advogados e jurisdicionados; e também pela serenidade e sensibilidade que marcam o nosso jeito de administrar, com parcimônia, ouvindo a todos, prezando por uma gestão democrática.

O que a senhora ainda pretende deixar como legado da sua gestão?

Penso que o grande legado que estou deixando é a sensibilidade, inovação e reinvenção. Inovação pelas medidas tomadas para melhor organização das unidades e atividades, gerando resultados melhores para a sociedade. Cito aqui a transferência de Varas do interior com menor movimentação para Teresina. Ressalto igualmente a criação de um sistema interno de Business Intelligence (BI) para monitoramento detalhado das atividades das Varas, suas pendências e cumprimento de metas.

Sensibilidade em atender as demandas pertinentes dos magistrados, servidores, advogados e partes, sempre pensando na Justiça como uma cooperação saudável entre todos os seus atores. E também em promover campanhas de cunho social voltadas para a erradicação do trabalho infantil e para o trabalho seguro, por exemplo.

E a reinvenção se deve ao fato de estarmos tendo que maximizar a inovação nesta época de pandemia. Já tínhamos implementado o disk-acordo e o balcão virtual antes da pandemia. Com ela, e consequentemente com a suspensão das atividades presenciais, editamos diversos atos tratando de trabalho remoto, sessões virtuais e por videoconferência, audiências por videoconferência, notificações por whatsapp, para citar alguns.

Ou seja, fomos forjados a nos reinventar e tivemos que criar e implementar inovações em curto espaço de tempo.

Dito isto, o que ainda pretendo deixar de legado são mais medidas inovadoras para o Tribunal e mais ações de sensibilidade às demandas que surgirem. A Justiça é feita por pessoas e serve a pessoas. É sempre no ser humano que devemos pensar primeiro.

Penso que nas adversidades descobrimos as nossas múltiplas capacidades. Uma nova sociedade vai surgir

Na última sexa-feira, 01 de maio, foi comemorado o Dia do Trabalhador. O trabalhador brasileiro tem motivos para comemorar?

Podemos dizer que sim, mesmo que de modo não muito satisfatório diante do cenário atual. Sou esperançosa de que tudo isso vai passar e, ainda que com sequelas, a classe trabalhadora vai se soerguer, e cabe à Justiça do Trabalho o desempenho de um papel crucial nessa retomada, apegando-se à sua essência de proteção ao mais frágil na relação de trabalho, mas também sensível ao equilíbrio de forças entre capital e trabalho diante do “novo normal” social que surgirá inevitavelmente. A minha mensagem é de esperança e fé de que novos e promissores cenários surgirão, apesar de sabermos que a luta vai ser árdua e talvez longa, e asseguro que, no que depender de nossa gestão, continuaremos a contribuir para qu o trabalhador piauiense e suas famílias possam, desde já, não se sentir desamparados.

Por: Natanael Souza, do Jornal O Dia
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