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Quilo da carne de jacaré é vendido a R$ 12 no Poti Velho

Embora seja comum na cultura local, o Ibama alerta que a compra e a venda desse produto são ilegais

17/03/2013 09:02

Entre R$ 7 e R$ 12. Este é o valor cobrado pelo quilo da carne do jacaré que é vendido clandestinamente em Teresina. A compra ilegal acontece em plena luz do dia e o preço é negociado diretamente com os pescadores. Em busca de flagrar esta comercialização, a equipe de reportagem do Jornal O DIA se deslocou até o bairro Poti Velho - local apontado pelos apreciadores da carne como sendo o mais fácil de encontrar o produto.

Na primeira investida, nosso enviado especial conversou com um pescador que disse que seria muito fácil encontrar carne de jacaré por ali e cobrou R$ 7 pelo quilograma da mercadoria que fora encomendada para o dia seguinte. Retornando ao local, a equipe disfarçada encontrou os primeiros entraves. O pescador não tinha conseguido o produto e pediu que um colega de profissão tomasse a frente da negociação.

Este segundo pescador cobrou R$ 12 pelo quilo do animal. No terceiro dia de tentativa, que fora agendado para a entrega da carne, a reportagem de O DIA não conseguiu localizar o pescador no ponto de encontro, mas conversou, inclusive, com familiares desta pessoa que informaram que o pescador ainda estava em campo tentando caçar o animal.

De acordo com este parente, o pescador teve que ir para a região do povoado Santa Helena, que está situado depois da Santa Maria da Codipi e antes da Comvap, para poder conseguir o animal. Isto porque as pessoas não estão mais pescando jacarés nas lagoas e nos trechos do rio próximos ao bairro Poti Velho e Boa Esperança. "Com as obras do Lagoas do Norte, os jacarés fugiram do local e está mais difícil encontrá-los, como era antigamente, por aqui. Por isso, eles têm que buscar em áreas mais distantes", explicou.

Apesar das tentativas do pescador, ele não conseguiu capturar o animal no prazo em que O DIA estipulou. Mas garantiu que na próxima quarta-feira faria outra investida, entretanto a equipe jornalística optou por encerrar as negociações, mesmo sabendo que eram totalmente viáveis.

Esta comercialização, que não recente, tem como um dos fatores motivacionais o gosto da carne do jacaré, que é bastante apreciado por quem já provou. Segundo Paula Sousa*, ela já comeu e, inclusive, preparou a carne do animal na sua casa. "Meu marido gosta muito de provar estes animais de caça e há uns três ano ele comeu uma farofa de carne de jacaré, como petisco em um bar no bairro Poti Velho e aí ele trouxe um pouco pra mim e eu achei muito gostoso", diz.

Paula conta que depois que provou o alimento, o casal chegou a comprar carne de jacaré para preparar em casa - o fornecedor do produto também morava na região da zona Norte da capital. "É uma carne bem branquinha, comparo até a cor de uma folha A4, mas é bem dura, demora a cozinhar. Quanto ao gosto, lembra bastante o sabor de aves, bem mais que o de peixe", descreve.

Paula lembra de outra experiência culinária que teve um tanto quanto peculiar. Ela estava em Parnaíba e lhe ofereceram um frito de manjuba, tradicional peixe de água salgada. Contudo, Paula reparou no sabor diferenciado e perguntou por que seria. "Foi aí que me contaram que havia um tempero especial, que no caso era banha de sucuri. Segundo eles, é uma tradição dos pescadores do litoral que quando matam uma sucuri tiram sua banha para usar na culinária", relata.

Segundo o casal, eles também já provaram cágado, tatu e veado. "Comi veado em um churrasco, a carne é deliciosa, muito nobre", revela Paula, acrescentando que desde sua infância teve experiências com comidas exóticas. "Nada supera a tanajura [espécie de formiga], frita, comia muito quando era criança lá em Pernambuco", afirmou.

Apesar dos elogios de Paula, a comercialização de carne de jacaré, bem como de outros animais silvestres, é ilegal. De acordo com o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), tanto vendedores quanto compradores podem ser penalizados se flagrados nesta atividade ilícita.

"A multa é de R$ 500 para cada animal apreendido e que não esteja na lista das espécies ameaçadas de extinção. Contudo, se o animal comercializado clandestinamente for ameaçado de extinção, a multa sobe para R$ 5 mil por cada animal abatido ou apreendido. Em caso de reincidência, o caçador ou vendedor pode até ser preso", explica o superintendente do Ibama no Piauí, Manoel Borges.

Foto: Jailson Soares/O Dia.

A carne dos animais é facilmente encontrada no mercado popular do bairro Poti Velho.

Desequilíbrio - Matança de jacarés aumenta cardumes de piranhas

A preocupação dos órgãos ambientes de proteção à fauna brasileira é totalmente plausível. O extermínio de uma espécie animal desequilibra toda a cadeia alimentar e pode trazer sérios problemas para a humanidade de uma forma geral.

Segundo Manoel Borges, superintendente do Ibama no Piauí, a matança de jacarés em uma lagoa ou em um rio vai causar o aumento dos cardumes de piranha, e este é um peixe pior que o jacaré em termos de agressividade ao ser humano.

"Outro dia, lá em José de Freitas houve relatos desta natureza. Banhistas disseram que estavam sendo atacados por piranhas no açude da região, por isso, tomamos medidas no sentido de repovoar a lagoa com jacarés, que é o predador natural da piranha. Então, a matança de uma espécie causa desequilíbrio ecológico", exemplifica.

O mesmo acontece com outras espécies que são alvos de caçadores. Manoel Borges cita o caso do rato ‘rabudo', que estampou boa parte da mídia local essa semana. A repercussão foi provocada por uma reportagem publicada no site nacional Uol, que afirmou que os moradores de Assunção do Piauí estavam matando o roedor para se alimentar devido a seca na região.

Esclarecidos os fatos, que, na realidade, retratam um hábito alimentar da população do município, o Ibama alerta que o abate do ‘rabudo' também é ilegal e pode acarretar em prejuízos ambientais.

"O que nós esperamos é que a população se conscientize e não coloque esta espécie em extinção, porque isto vai ter resultados futuros. A cadeia alimentar depende do rabudo, seja quando ele está na natureza como o predador de tubérculos, frutas silvestres, ou quando ele é caça de outros animais como a raposa, o cachorro do mato, lobo-guará, onça", pondera.

Todavia, Manoel Borges ressalta que nem toda carne de animal silvestre comercializada é ilegal. Segundo, o superintendente do Ibama, hoje, a lei de proteção à fauna permite que se promova criatório de espécies de animais e alguns destes estabelecimentos têm fins comerciais, quer dizer, o proprietário pode ter autorizado pelo Ibama o criadouro de cotia, ou de paca, por exemplo, para a venda.

"No passado, nós autorizamos a comercialização da carne do jacaré no pantanal mato grossense, porque naquela época tinha um problema sério de tráfico de drogas, onde a carne e pele do jacaré era moeda de troca para adquirir entorpecentes, e por isso incentivamos os proprietários de fazenda a criar o animal para comercializar a sua carne, desde que eles devolvessem ao habitat natural 5% de sua criação para repovoar o pantanal", fala.

Fiscalizações

Nos últimos quatro meses, o Ibama se dedicou às fiscalizações relacionadas à piracema, que é o período de reprodução dos peixes. "Nós apreendemos mais de 20 km de redes de pesca, do mês de dezembro para cá. Em cinco operações, ao longo do curso dos rios Poti e Parnaíba, realizamos operações que flagraram a pesa do caranguejo uçá, de lagostas e de camarões", informou Manoel Borges.

Segundo o superintendente do Ibama/PI, o órgão também realizou uma grande fiscalização no mês de outubro/novembro do ano passado, onde foram apreendidos animais silvestres e armas, inclusive pesadas e importadas. Manoel Borges conta que dependendo do município de fiscalização variam os animais apreendidos. "Quando nós fiscalizamos a região da Serra Negra, próximo aos municípios de Valença, Pimenteiras, apreendemos muito veado, tatu, onça", disse.

Na perspectiva do órgão, essa caça a animais silvestres acontece mais por esporte que por necessidade ou fome. "É só para fazer o tira gosto da cerveja", avalia Manoel Borges.

Alimentação - Paladar exótico tem raízes culturais

Independentemente da ilegalidade do abate de animais silvestres, tais como o jacaré e o rato ‘rabudo', a culinária exótica com pratos a base destas espécies possui um viés que vai além do esporte e da curiosidade, é uma questão cultural.

Alimentar-se de escorpião, por exemplo, chega a ser inimaginável para um brasileiro, porém, na China, este é um alimento típico, muito apreciado e, por vezes, caro. Da mesma forma que, no Brasil, panelada e sarapatel fazem sucesso na mesa nordestina, por outro lado, em algumas regiões do próprio país estes pratos são vistos com ressalvas, já que, se baseiam, no caso do sarapatel, nas vísceras e sangue de porco e carneiro, ou, no caso da panelada, das tripas, bucho, nervos e até da unha do boi.

"Minha panelada é sempre bem feita. Tem cliente que chega aqui e brinca dizendo que panelada boa é a que tem gosto de merda, aí eu digo ‘pois sendo assim a minha não presta não, porque não tem gosto de merda'. Mas tem panelada por aí que tem esse gosto, nem todo mundo tem o cuidado de fazer, preparar", comenta a cozinheira do Mercado da Piçarra, Maria Onete.

Neste rápido passeio que mostra bem as diferenças dos hábitos alimentares de diversas regiões do planeta, é que o sociólogo Francisco Mesquita sustenta sua tese de que os hábitos alimentares de qualquer indivíduo dependem muito da cultura construída na região em que ele vive. "Um hábito cultural se desenvolve desde as condições climáticas de uma região, às questões relacionadas às limitações de trabalho, bem como devido às crenças e costumes que vão se construindo ao longo do tempo", disse.

Francisco Mesquita cita, por exemplo, o caso das regiões que convivem com a estiagem. "Em uma região que é bastante castigada pela seca, aonde as pessoas tem dificuldades de conseguir alimentos classificados como convencionais, abre-se espaço para alimentações alternativas, por isso o hábito alimentar daquela região passa a se diferenciar de outros locais e, inclusive, recebem a denominação, em alguns casos, de alimentos exóticos", comenta.

Para o sociólogo, este é o caso da prática de comer o rato ‘rabudo' no interior do Piauí. "Se, hoje, a população de Assunção do Piauí consome o rabudo por hábitos culturais, não se tira desse debate que tal hábito fora construído dentro de um contexto cultural demarcado pelas limitações e dificuldades de adquirir alimentos mais convencionais para a população daquela região no passado", avalia.

Outro exemplo citado por Francisco Mesquita é o do gongo do coco babaçu, comum no estado do Maranhão. "A lavra do coco babaçu, ou o gongo como é mais conhecido, hoje é um hábito cultural, mas durante muito tempo as pessoas consumiam esta lavra mais na época no período de estiagem que no período em que a oferta de alimentos era variada", explica o sociólogo.

Por: Virgiane Passos - Jornal O DIA
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