Portal O Dia - Notícias do Piauí, Teresina, Brasil e mundo

WhatsApp Facebook Twitter Telegram Messenger LinkedIn E-mail Gmail

Marcas da exploração: trabalho doméstico escraviza crianças

Dificuldade de fiscalização e a ideia de que o trabalho infantil doméstico é inofensivo, contribuem para que ele permaneça invisível

12/05/2016 18:07

Sabrina e Amandacompartilhavam tristezas, aflições e marcas de violência. Eram vítimas das mesmas ameaças e sentiam medos em comum. Tinham oito e 12 anos, respectivamente, quando a ‘brincadeira de casinha’ se transformou em rotina obrigatória. Virou trabalho, risco, agressão, dor...

A história das duas meninas está em uma ação ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho do Piauí (MPT/PI) e representa de modo bem característico a crueldade de uma das piores formas de trabalho infantil, o doméstico.

No depoimento prestado ao MPT/PI, Sabrina relata que veio do povoado Santa Luz, no município de União (a 62 km de Teresina), para trabalhar na casa de uma servidora pública na capital do Piauí, onde era obrigada a fazer todos os serviços domésticos. Ela ainda sofria agressões com faca, fio de carregador de celular e cabo de vassoura.

Na mesma casa, Amanda sofreu torturas semelhantes e foi agredida também por outras pessoas da família da exploradora. A menina que veio do município de Miguel Alves (a 116 km de Teresina) contou em seu depoimento ao MPT/PI que já chegou a dormir no chão. Ficava vários dias trancada e sem comida. Ela ainda possui marcas no pescoço, nas mãos e no rosto, comprovando as agressões.

As histórias sobre o trabalho infantil doméstico guardam aspectos em comum para a maioria das vítimas. Em outra ação ajuizada pelo MPT/PI em 2015, uma menina de 14 anos que morava no município de Betânia do Piauí (a 491 km de Teresina) estaria sendo vítima da exploração de uma empresária do ramo de restaurantes da capital.

A vítima denunciou que nunca foi matriculada na escola e que trabalhava na casa da exploradora sem direito a folga. À noite, de domingo a domingo, a menina servia de garçonete em um dos restaurantes da família. Para fazer tudo isso, recebia uma quantia mensal de R$ 500,00.

Segundo o vice coordenador regional de combate ao trabalho infantil, o procurador Edno Carvalho Moura, as vítimas do trabalho infantil doméstico geralmente são da zona rural ou de cidades do interior. “As famílias exploradoras fazem promessas de estudo e dizem que vão dar uma vida melhor. A família das crianças, muito pobres, confiam”, destaca.

O perfil das vítimas geralmente é caracterizado pela condição de vulnerabilidade nos aspectos econômicos, educacionais e sociais. “Essas crianças não estudam ou têm uma educação bastante precária. Possuem família numerosa e desestruturada”, ressalta o procurador.

Vítimas possuem vulnerabilidades sociais (Fotos ilustrativas: Assis Fernandes/ODIA)

A professora doutora Dalva Macedo, membro no Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Infância, Adolescência e Juventude do departamento de Serviço Social da Universidade Federal do Piauí, acrescenta que a situação de pobreza extrema expõe as vítimas a diversos tipos de violência. “No caso do trabalho doméstico isso é ainda mais grave, porque existem violências que não são visíveis, como o assédio sexual, as várias promessas feitas e não cumpridas, ou mesmo o trabalho escravo”, destaca.

A ação judicial que defende Sabrina e Amanda tramita desde 2010. A exploradora foi condenada a pagar mais de R$ 250 mil de indenização e de direitos trabalhistas para as meninas. Em março deste ano aconteceu uma audiência para discutir sobre como será feito o pagamento, que ainda não foi efetuado.

Já a menina de Betânia do Piauí até agora não conseguiu uma sentença favorável. Em decisão recente, o juiz entendeu que o MPT não tinha competência para pleitear a ação. O procurador Edno Carvalho garantiu que vai recorrer da decisão e acredita que ela será reformulada. Ele está pedindo uma quantia de quase R$ 33 mil referente a verbas trabalhistas e indenização por danos morais.

O dinheiro certamente não apaga as marcas de ferros quentes nos pés ou de cortes de faca no corpo, causadas pelos castigos aplicados em Sabrina e Amanda. Não recupera os danos aos estudos da jovem de Betânia do Piauí. Obviamente não repara os problemas sociais e psicológicos causados às meninas.

De todo modo, as penalidades que estão previstas à exploração do trabalho infantil podem servir como alerta para quem pratica tal crime. Além de responder no âmbito trabalhista, civil e administrativo, os acusados podem responder criminalmente. Eles também precisam pagar os débitos trabalhistas e indenizações por dano moral individual ou coletivo, em algumas situações.

Um caso que segue a tramitação normal, nas Varas do Trabalho do Piauí, demora cerca de dois anos para ser concluído. No entanto, esse tempo pode se estender muito mais, de acordo com o acúmulo de processos trabalhistas, com os recursos impetrados pelos acusados ou com as dificuldades para comprovar a ocorrência da exploração.

Trabalho infantil em números

A cada minuto, um nordestino com idade entre 10 e 15 anos desempenhava alguma ocupação no ano de 2010. A média tem como base os dados mais recentes divulgados pelo IBGE, que revela um total de 561 mil crianças e adolescentes nessa condição na região Nordeste.

O procurador Edno Carvalho alerta que o trabalho doméstico, por ser uma das formas mais degradantes de trabalho infantil, não pode ser desenvolvido por jovens com menos de 18 anos. “Essas pessoas vão trabalhar sem nenhuma proteção e com produtos que não são adequados para a idade”, destaca.

Aliado aos danos à saúde física, as vítimas estão expostas a agressões psicológicas. “Elas são diminuídas sempre e têm a auto estima bastante afetada. Não há explorado que não sofra, que não seja exigido dele um nível de submissão muito elevado. Há a necessidade de reverência da criança para com o explorador. Se este não consegue a obediência irrestrita, vai usar a força bruta”, observa Edno Carvalho.

Pior que tudo isso é a dificuldade para as vítimas perceberem a exploração sofrida. Seja pela vulnerabilidade extrema, pelos sofrimentos que já passavam desde que moravam com os pais, ou mesmo pela inocência infantil, as crianças chegam a acreditar que a vida está melhor.

Esse era o pensamento de Lorena*, uma menina de 16 anos que voltou a morar com avó em um povoado do município de União (a 62 km de Teresina), após ficar 11 meses trabalhando como babá na casa de uma empresária na capital. “Eu me arrependi de ter saído. Já estava tão acostumada! Sinto falta do bebê”, admite a jovem.

Ela foi indicada pela própria mãe, que também trabalhava na casa fazendo os serviços domésticos. A promessa era de ter melhores oportunidades de estudo, mas a realidade foi um ano perdido na escola. É que a jovem nem sempre conseguia ir pra aula, nunca tinha tempo para estudar ou sequer fazer a lição de casa.

Seria mesmo difícil se concentrar nas atividades escolares trabalhando praticamente 24 horas por dia, com as folgas semanais sendo engolidas pelas viagens com os patrões e as noites de sono perdidas devido aos cuidados com o bebê. “Eles saiam e me deixavam sozinha, chegavam só de manhã. Eu não gostava. Às vezes eles vinham bêbados e brigavam. Eu ficava com medo”, relata Lorena.

Lorena não sentia explorada e sente saudades do bebê que cuidava (Foto: Elias Fontinele/ODIA)

Quando ela pediu para sair, a patroa ainda argumentou que no interior não havia futuro. Mas as possibilidades de sucesso, sendo explorada em Teresina, também seriam restritas. Sequer salário a jovem recebia. “No começo ela me dava creme, shampoo e outras coisas de uso pessoal. Dava o dinheiro da passagem de ônibus pra eu vir pro interior, e o máximo que me pagou foi R$ 200,00”, conta Lorena, que também ganhou um celular e o aparelho dentário.

Segundo o procurador Edno Carvalho, este caso desenha o modelo do trabalho infantil doméstico. “As meninas geralmente se tornam babás, mas não existe pagamento. Elas trabalham em troca do lar, da alimentação e da roupa. Quando estudam é em escola pública, no turno da noite”, completa.

Em 2014, dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, mostram que havia 3,3 milhões de pessoas de 5 a 17 anos de idade trabalhando no Brasil, mas nem todas se encaixavam na condição de trabalho infantil. Comparando com 2013, houve um aumento de 4,5% no número de crianças e adolescentes ocupadas.

Encontravam-se na situação de trabalho infantil 554 mil pessoas entre 5 e 13 anos. Destas, 70 mil estavam no grupo de 5 a 9 anos e 484 mil no grupo de 10 a 13 anos; enquanto no grupo de 14 a 17 anos, estavam 2,8 milhões de adolescentes.

No Piauí, mais de 80 processos de trabalho infantil foram movimentados de abril de 2015 a abril deste ano. Entre as principais formas de exploração no estado se destacam o trabalho nos lixões, em fábricas de farinha, oficinas mecânicas, postos de lavagem, em casas de jogo de azar e no trabalho infantil doméstico. Tais denúncias são de casos encontrados em pelo menos 19 municípios, entre eles Teresina, Picos, Parnaíba, Floriano, São Raimundo Nonato, Esperantina, Amarante, Altos e Campo Maior.

Qualquer forma de trabalho é proibida para menores de 14 anos. Para jovens entre 16 e 18 anos é permitido trabalhar, desde que não seja à noite e nem haja condição insalubre, perigosa ou penosa.

Entre 14 e 16 anos, os adolescentes podem trabalhar como menores aprendizes. Nesse caso é preciso ter um contrato de aprendizagem com carteira assinada pela empresa, por até dois anos. O jovem também deve estar devidamente matriculado em um curso profissionalizante e desenvolver atividade compatível com a que está aprendendo.

Dificuldade de fiscalização

No âmbito internacional, o Brasil assumiu como compromisso do milênio erradicar as piores formas de trabalho infantil até 2018, mas a meta é considerada por especialistas como inalcançável. As atividades a serem erradicas constam no decreto nº 6481 de 2008. A lista é formada por 89 ocupações caracterizadas por condições insalubres, perigosas ou penosas.

O procurador Edno Carvalho (foto ao lado/MPT-PI) destaca que as dificuldades de fiscalização do trabalho infantil doméstico se tornam maiores devido à proteção constitucional do lar. “Os órgãos de fiscalização não podem ingressar na residência das pessoas. Não é como nas empresas, que o Ministério Público do Trabalho tem acesso a qualquer hora, sem necessidade de consentimento, pelo menor indício de irregularidade”, destaca. A exceção é somente para casos de flagrante delito, para prestar socorro ou com ordem judicial e durante o dia.

A socióloga Dalva Macedo lembra ainda a questão cultural, que identifica o trabalho infantil doméstico como uma necessária retribuição a ser dada pela criança pobre e sem perspectivas, que teve a oportunidade de melhorar sua condição de vida. “Perdura a lógica de que a família está ajudando”, disse.

Outro aspecto que a pesquisadora classifica como parte da nossa linguagem é a ideia de que o trabalho dignifica e previne a prática de atos infracionais. “É melhor trabalhar do que estar brincando. Essa lógica é cultural e faz as pessoas não entenderem como exploração”, avalia Dalva Macedo.


Não seja conivente. Denuncie aqui! 


A dificuldade de fiscalização e a ideia da sociedade de que o trabalho infantil doméstico é inofensivo e até preventivo, contribuem para que ele permaneça invisível e para que a exploração se perpetue nos lares de classe média e alta.

19 anos e uma década de trabalho

Mariano* tinha nove anos quando chegou à casa onde foi explorado por uma década. Não estudou, como fazia qualquer menino da sua idade. Em vez de livros e cadernos, preenchia seus dias com afazeres domésticos na chácara de uma professora universitária. Capinava, ajudava na cozinha, limpava a piscina, varria o terraço, botava a mesa, lavava banheiro, arrumava a cama da mulher... perdia a infância que nunca experimentou.

Desde muito pequeno, Mariano já conhecia o caminho da roça, que seguia junto com a avó. “Ela era muito bruta comigo, me botava pra trabalhar desde pequenininho. Minha obrigação era de manhã ir pra roça, de tarde ir pra escola e de noite ia pilar arroz. Se não pilasse, apanhava”, conta o jovem.

"De tarde eu ia pra escola, mas não tinha tempo de estudar" (Foto: Assis Fernandes/ODIA)

Quando soube que poderia se mudar para a cidade, o menino achou que teria melhores oportunidades. “Ela (a exploradora) disse que era só pra acompanhar, mas quando cheguei lá foi totalmente diferente. De manhã eu fazia as coisas na chácara, de tarde ia pra escola, mas chegava atrasado e não tinha tempo de estudar em casa. À noite eu quase não dormia. Ficava abrindo e fechando porta pra eles, que saiam e me deixavam sozinho. Do mesmo jeito era quando viajavam”, relembra Mariano.

A rotina de exploração durava a semana inteira, com algumas variações aos finais de semana, mas nunca com direito a folgas. “Quando tinha churrasco na chácara eu trabalhava como garçom, servindo as pessoas”, disse.

Nas raras vezes em que lhe era permitido sair, aos sábados entre às 18h e 22h, a mulher lhe dava R$ 30,00. “Pra mim era muito, porque eu não conhecia dinheiro. O máximo que já ganhei foi R$ 300,00, mas só depois que eu comecei a cobrar meus direitos”, conta Mariano.

A exploração também chegou à agressão física, quando Mariano se recusou a fazer uma das atividades domésticas. “Aí ela veio pra cima de mim e eu saí correndo. Quando eu entrei em casa ela puxou minha orelha e me trancou no quarto. Ainda hoje lembro desse dia”, relata.

Após uma década de exploração, jovem se dedica aos estudos (Foto: Assis Fernandes/ODIA)

O procurador Edno Carvalho avalia que nas relações de exploração do trabalho infantil doméstico existe um sentimento de posse. “O explorador acha que está substituindo o pai. Como temos uma tradição muito forte de propriedade dos pais em relação aos filhos, isso se transfere quando você está com domínio sobre uma pessoa”, observa.

Há alguns meses Mariano pôs fim em tudo a que se resumiu a sua vida desde criança. Saiu da casa onde era explorado, não voltou a morar com a família e resolveu estudar. “Eu conheci a minha companheira e ela me orientou. Eu sei que só vou ter uma vida melhor se estudar”, reconhece.

Aos poucos, a esperança

Muitas coisas começaram a mudar nas relações de trabalho após a revolução industrial ocorrida no Brasil a partir da década de 30, no século XX. Houve mais direitos para os trabalhadores e o início da percepção de que era preciso estabelecer algumas regras para o trabalho infantil, realizado principalmente nas fábricas. Naquele período, eram frequentes os casos de crianças mutiladas, feridas ou até mesmo “engolidas” pelas máquinas.

De acordo com a professora doutora Dalva Macedo, somente a partir da revolução industrial é que o trabalho infantil começou a ser visto como uma forma de violência à criança. “Nos movimentos de reivindicação de direitos para os trabalhadores, a questão da infância apareceu, mas as crianças ainda poderiam trabalhar”, contextualiza.

A exploração do trabalho infantil, como mostra a professora doutora, é uma questão histórica. Durante muito tempo, foi visto como um método para prevenir os jovens da delinquência, e também como uma preparação para o mercado. Para aqueles que já haviam delinquindo, o trabalho servia como punição.

A concepção só começou a mudar verdadeiramente após o Estatuto da Criança e do Adolescente, instituído na década de 90. “Ali se deixa de reconhecer que uma criança poderia trabalhar, mesmo se já estivesse na adolescência. Ela precisa, na verdade, de um sistema de proteção social, familiar, educacional e de políticas públicas. O Estatuto dá uma definição mais clara de que o trabalho infantil é prejudicial para a criança, seja ele em uma casa ou em qualquer outro lugar”, explica Dalva Macedo.

Na legislação, nos acordos internacionais e nos estudos dos especialistas em infância e juventude, o trabalho infantil é caracterizado como uma forma de violência e de violação de direitos. “A criança deve ser protegida. Ela tem que estar na escola, ter tempo para estudar, para o lazer e para a cultura”, defende a pesquisadora.

Mas a verdade é que milhares de crianças e adolescentes em todo o Brasil têm seus direitos substituídos por deveres. Sob a máscara da benfeitoria, os exploradores roubam a única oportunidade que esses jovens pensavam ter com relação ao futuro, criando a falsa expectativa de está saindo do interior para estudar na capital.

Por fim, a falta de perspectivas é certamente a pior consequência do trabalho infantil. Isso porque a exploração de agora continuará a existir na fase adulta, mas através de subempregos que rendem salários miseráveis. E o círculo de injustiças sociais se fecha para ser recomeçado, provavelmente com os filhos daqueles que são as vítimas.

*Os nomes das vítimas foram modificados para preservar a identidade

Por: Nayara Felizardo
Mais sobre: