Na história política do Brasil, até 1934, mulheres, negros, pobres e analfabetos não tinham direito ao voto. Estes grupos, que juntos representavam a maior parcela da população, chegaram ao século XX sem ter assegurado não só a sua manifestação política, mas, também, social. Os anos avançaram e as lutas por maior igualdade também. Hoje, o país garante o direito ao voto universal e à defesa dos direitos humanos se solidifica em diferentes cenários. No entanto, novos desafios se apresentam. Um deles parte do questionamento latente: vivemos, realmente, em um país que avança para assegurar a participação das múltiplas formas de existir em sociedade? Acontecimentos recentes - e recorrentes - mostram que não.
Um vídeo que circulou durante a Copa do Mundo nas redes sociais é prova deste cenário. O registro, que mostrava brasileiros assediando uma mulher russa, em Moscou, posteriormente gerou debates que se estenderam pela imprensa brasileira e até internacional. As cenas provocaram discussões sobre a forte presença do machismo na própria formação da sociedade brasileira, mas também revelaram uma outra faceta constante no país: a de grupos que minimizam, sem nenhum pudor, certos tipos de comportamento.
É que, para muitos, a insistência na identificação de ações de machismo, racismo ou homofobia, por exemplo, nada mais é que “mimimi” – expressão cunhada para identificar quem reclama constantemente por algo ou, como a própria onomatopeia sugere, choraminga por determinada situação.
Para Andreia Marreiro, mestra em Direitos Humanos e Cidadania pela Universidade de Brasília (UNB) e coordenadora da pós-graduação em Direitos Humanos Esperança Garcia, esse acirramento entre quem reage frente a cenários de opressão e quem inferioriza a cobrança de direitos por minorias ou grupos sociais mais vulneráveis, tem notadamente se intensificado nos últimos anos.
“Nós temos a construção de uma sociedade arquitetada sobre essas estruturas, a estrutura do machismo, a estrutura do racismo, da lgbtfobia, da colonialidade. Essas questões todas não começam neste momento, mas vêm se intensificando. Nós temos sujeitos e sujeitas que foram historicamente oprimidos e temos lutas que têm resultado em conquistas. Mas temos também, em igual proporção, uma reação do outro lado de sujeitos que sempre estiveram nesse lugar de poder, dizendo que tem que barrar isso”, destaca.
"A mulher é vista como vulnerável, como um objeto que se pode usar, abusar. Não aceitamos mais. Assédio, machismo, isso vai ser, sim, exposto, denunciado e barrado”
O que muitas pessoas tentam mostrar é que, o que antes podia ser considerado apenas como "piada" ou “brincadeira”, agora, com o empoderamento de setores por muito tempo invisibilizados dentro da sociedade e pela constante luta por direitos, mostra-se como uma forma cruel de sobrepujar-se sobre determinados grupos sociais.
“Eu sou mulher e aquele vídeo me ofendeu de tal maneira que eu tive que falar e alertar do absurdo que é aquela situação para quem eu pude. Por que eles não “brincaram” com um homem russo? Por que não pediram que um homem russo repetisse coisas que, para eles, são engraçadas? A mulher é vista como vulnerável, como um objeto que se pode usar, abusar. Não aceitamos mais. Assédio, machismo, isso vai ser, sim, exposto, denunciado e barrado”, explica a universitária Ana Clara Lopes.
O respeito cobrado pela jovem e a postura de enfrentar tais comportamentos também é relembrado pela professora Andreia Marreiro. “Usar o ‘mimimi’ é uma forma de silenciar, é um ‘cala boca’, é dizer: fica no seu lugar. É uma forma de manutenção dessa estrutura que organizaram nas nossas vidas. Elas estão dizendo: “não vão lutar não, vamos deixar as coisas como elas estão”. Mas muitas pessoas não querem mais deixar as coisas como elas estão, porque elas nos geram dor, elas geram violência, elas nos geram feridas muito fortes e todas as pessoas querem ter uma vida com felicidade. Para que todas as pessoas possam ter o direito de ser quem são, é preciso que a gente denuncie e lute contra essa estrutura”, reforça.
Encarar como justa a luta por direitos de grupos historicamente inferiorizados seria, assim, uma forma de trazer mais justiça em uma sociedade ainda marcada pela desigualdade em seus diversos aspectos.
“Usar o ‘mimimi’ é uma forma de silenciar, é um ‘cala boca’, é dizer: fica no seu lugar. É uma forma de manutenção dessa estrutura que organizaram nas nossas vidas"
“A luta contra o racismo não é só de pessoas negras”, diz professora
Neste cenário de luta por direitos, o racismo no Brasil, por vezes demostrado de forma velada, é ponto de uma grande luta social para seu enfrentamento. Isto porque o país ainda vive as consequências de sua própria formação histórica. Durante os cerca de 300 anos em que negros, em razão da sua condição jurídica de escravizados, não podiam ser considerados cidadãos de direitos, a abolição dessa estrutura de servidão não foi suficiente para romper os preconceitos até hoje enrustidos na sociedade.
Em Teresina, um episódio recente que também tomou espaço nas redes sociais, e discussão na mídia, demonstra a necessidade de se conhecer com mais afinco a própria história do país. Um professor de educação física realizou um “blackface”, uma técnica de maquiagem teatral na qual pessoas brancas pintam-se de negras para imitá-las de forma caricata, durante uma aula comemorativa em uma academia na zona Leste da Capital. Vestido de “Nega Maluca”, o ato foi transmitido por meio de rede social e gerou repercussão de apoio e outras totalmente contrárias à iniciativa do profissional. Isto porque o blackface é uma ação tida como racista, já que reforça características físicas e cria o estereótipo de pessoas negras com o intuito de fazer piadas.
O episódio fez com que o professor se retratasse pelo ocorrido. “Este é um capítulo triste da minha história e saber reconhecer o erro é amadurecer com ele [...] Esse lamentável erro vai servir de lição pedagógica para que eu busque mais conhecimentos e ferramentas corretas no combate contra o preconceito, que é uma das bandeiras que eu sempre levanto dentro da minha caminhada em busca de igualdade para todos”, escreveu Max Dourado em seu Instagram, que é acompanhado por mais de 12 mil pessoas.
“Este é um capítulo triste da minha história e saber reconhecer o erro é amadurecer com ele", declarou Max Dourado no Instagram
No entanto, mesmo com a atitude de reconhecimento do erro, os comentários que defendiam o comportamento do profissional não tardaram a aparecer no mesmo post. Um deles diz que o ato de repercussão “foi só mi-mi-mi mesmo. Os negros são os próprios a terem preconceitos com eles mesmos. Preconceito, racismo, homofobia, tudo vem primeiro, tá chato pra caralho. Aposto que os ofendidos de plantão se estivessem lá tinham curtindo muito e nem iam se lembrar de achar ruim” [sic], defende o usuário. E parte de análises como essa a necessidade de romper com as engrenagens do racismo tão presentes no país.
É o que Andreia Marreiro explica ao destacar que a reação frente a comportamentos que inferiorizam pessoas negras não podem parar. “Antes, o racismo era reproduzido e tinha poucas pessoas reagindo a isso, mas agora isso mudou. As pessoas que querem conquistar uma sociedade livre de racismo estão dizendo é: olha, nós não vamos dar passos para trás. Só vamos dar passos para frente e isso significa escancarar todo o processo de escravidão que agente viveu e passar essa história a limpo”, afirma.
Andreia Marreiro diz que luta contra o preconceito é diária (Foto: Jailson Soares/O Dia)
Causa conjunta
A professora também lembra que esta é uma causa de todos. “A luta contra o racismo não é só de pessoas negras, todas as pessoas devem falar sobre o racismo, mas, historicamente, as pessoas negras foram silenciadas e elas precisam ser escutadas. A abolição da escravidão não foi uma ação de generosidade do povo branco, mas de conquista do povo negro, só que essa é uma história invisibilizada. E é invisibilizada porquê? Porque isso nos inspira, isso nos encoraja. Se essas pessoas que viveram em uma situação mais difícil que a nossa se insurgiram diante dessa situação, por que nós vamos reivindicar? a nossa luta é diária”, constata. No mesmo tom em que Andreia relembra as barreiras criadas na sociedade por conta do racismo e de tantas outras formas de expressão, ela também relembra que a tônica da transformação resiste e que é, sim, possível construir uma sociedade igualitária. “Minha luta é para que possamos viver em um mundo sem machismo, sem racismo, sem LGBT fobia, sem pessoas empobrecidas, então eu tenho muita esperança. É uma esperança que é verbo, que não espera, que acredita que a gente pode transformar sim essas estruturas para garantir que as pessoas possam viver com igualdade e liberdade”, finaliza.
Confira a íntegra da reportagem na edição deste fim de semana do Jornal O Dia
Por: Glenda Uchôa - Jornal O Dia