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Apropriação cultural afeta trabalho dos movimentos sociais, diz especialista

Uso de tranças pela cantora Anitta em novo clipe reacendeu debate polêmico. Especialista diz que utilização de acessórios deve reforçar luta pela valorização do negro.

03/09/2017 08:49

Durante as gravações de seu novo clipe, "Vai Malandra",  no dia 20 de agosto deste ano, a cantora Anitta apareceu usando tranças, um elemento característico da cultura africana e indiana, o que gerou muita discussão nas redes sociais, sobretudo pelo que se define como apropriação cultural. Alguns internautas destacaram que a cantora estaria tentando passar a imagem de uma mulher negra. O mesmo aconteceu com a atriz Isabella Santoni, que também apareceu com tranças e foi alvo de críticas.

Em novo clipe, cantora Anitta aparece usando tranças (Foto: Divulgação)

Para os grupos de movimento negro, quando uma mulher branca utiliza tranças, esse elemento tem caráter puramente estético, diferente das mulheres negras, que visam representar as tradições, suas origens e tentam desconstruir o que é imposto pela sociedade. É o que explica a mestre em Educação Halda Regina da Silva, coordenadora estadual de Políticas Públicas para as Mulheres e membro do Instituto Mulher Negra no Piauí.

"Nós, mulheres negras, na nossa cultura e no nosso desenvolvimento, estamos dentro de um contexto histórico e social, pretendemos resgatar a resistência das mulheres negras, como forma de ter espaço social e não entrar dentro de um padrão que sempre foi imposto pela comunidade. Quando as mulheres negras pensam nessa forma, elas querem mostrar com esse cabelo, com essa estética, não como forma de modismo, mas como forma de quebrar esse colonialismo. Temos uma justificativa de por que usar um cabelo black, uma transa, um dread, um turbante. O sistema sempre impõe que o que é nosso não tem valor social ou intelectual, mas estamos lutando como forma de resistir à sociedade e fugir dos padrões, valorizando a nossa matriz, que é a origem africana", cita.

Halda Regina afirma que as pessoas precisam conhecer as origens históricas dos acessórios e da cultura negra (Foto: Assis Fernandes / O DIA)

Halda Regina da Silva destaca que, normalmente, uma mulher não branca que utiliza elementos da cultura negra, como tranças, o faz por questões estéticas, sem conhecer o contexto histórico e o que apele povo precisou enfrentar ao longo de gerações para conseguir os direitos que têm atualmente. Por isso, essa valorização ocorre através da cor, dos cabelos e do visual usado. A coordenadora pontua que a apropriação cultural desgasta e enfraquece o trabalho que tem sido construídos por grupos e movimentos sociais, especial,ente quando é feito por pessoas públicas.

"Se eu não sou uma mulher negra, mas quero usar meu cabelo black, ou tranças, é porque eu acho bonito ou está na moda, não por uma questão de resistência. Porque uma mulher não negra não sofreu o preconceito, racismo e as dificuldades que uma mulher branca sente na sociedade. A mulher branca pode entender sobre o racismo por conta do acesso à informação, mas ela não vivencia. E isso é apropriação cultural, porque existe um motivo para ter o resgate dessas características marcantes, porque nos é imposto que devemos usar cabelo curto, alisado e queremos quebrar esses esteriótipos", acrescenta.

Halda Regina lembra ainda que as pessoas públicas têm um papel importante de informar e fazer a discussão sobre o preconceito alcançar o maior número de indivíduos. Ela cita, por exemplo, a cantora Beyoncé, que é uma mulher negra e utiliza suas músicas para falar de racismo, além de participar de movimentos que giram em torno do tema. 

"O que as músicas a Anitta acrescentam para a população negra? Se ela acrescentasse isso no seu modo de ser, no seu discurso, fosse um movimento pela questão racial, com certeza o movimento não iria protestar. No entanto, as músicas dela e o posicionamento não são de forma a conscientizar as pessoas sobre o racismo, mas apenas porque queria ficar na moda, algo por estética, porque muitas cantoras americanas usam. E se observarmos, ela fez cirurgia para mudar o nariz, porque a estética se aproximava mais da pessoa negra. Como não contestar uma pessoa dessas? Mas o movimento de mulheres negras nunca barrou outras mulheres que se consideram brancas de usarem turbante, mas fazemos questão de explicar o que realmente aquele item significa, não apenas usar como sendo moda, porque isso não vai ajudar a desconstruir o racismo e o preconceito cultural", alerta. Halda Regina.

"A gente faz um trabalho de autoestima e chega nos espaços e as pessoas desconstroem", diz membro de movimento negro

Gardênia de Carvalho é membro do Grupo Ijexá Nagô, movimento que foca no uso de turbantes, chapéus e acessórios, como representação da Umbanda. Ela explica que os elementos rementem respeito aos Orixás. O adereço, que possui uma grande representação simbólica e história ao grupo, muitas vezes é utilizado por outros indivíduos apenas como um ícone de moda, como acontece com os cabelos crespos e cacheados. 

  1. Gardênia ressalta que acessórios servem para valorizar a cultura negra, fortalecendo a luta contra o preconceito (Foto: Assis Fernandes / O DIA)

"Para nós, usar esse acessório tem uma representação, diferente de outras pessoas, que usam por moda e não entendem o significado. Eu não concordo muito, mas também explico para elas o que representa, como forma de ir à luta, mostrar a história e identidade negra. Existe muita apropriação cultural de maneira aleatória, as pessoas não estão muito preocupadas em entender o que aquilo representa, mas sim por moda. É o que acontece,  por exemplo, com quem tem o cabelo cacheado, que todo mundo quer ter o cabelo assim porque está na moda, mas não entende que é aquilo é uma libertação de padrões impostos pela sociedade. A gente faz um trabalho de autoestima e chega nos espaços e as pessoas desconstroem", diz Gardênia de Carvalho.

De acordo com ela, quando uma pessoa pública aparece na mídia com uma referência de determinado grupo, movimento ou raça, mas não aplica em seus dia a dia, isso enfraquece o trabalho desenvolvido por aqueles membros. "Quando você mostra determinada referência, mas na prática não faz, isso desvaloriza nossa luta. Isso já aconteceu com a minha filha de apenas 07 anos .Ela frequenta o Grupo Ijexá Nagô e sabe da importância da valorização do cabelo, do cacheado, mas quando ela chega na creche a professora desconstrói o que ensinamos, pedindo para ela amarrar o cabelo, porque está todo bagunçado. Mas ela, sabendo do que já ensinamos para ela, então ela diz que é negra e tem orgulho do cabelo que tem", conclui.

Colorismo X Apropriação cultural

O tema também gerou outras discussões nas redes sociais, como a diferenciação de Colorismo e Apropriação Cultural. O publicitário Spartakus Santiago publicou um vídeo nas redes sociais sobre o tema, que já possui mais de 2,2 mil visualizações e 33 mil compartilhamentos, onde ele faz um breve esclarecimento os assuntos. Segundo ele, a cantora Anitta não faz apropriação cultural ao utilizar tranças, vez que ela é filha de um homem negro e uma mulher branca, logo, ela também é negra.


"O Colorismo fala que as pessoas negras claras não são tratadas da mesma forma que as pessoas negras escuras. Elas são percebidas como se fossem menos negras e sofrem muito menos os efeitos do racismo e são menos vistas como parte dessa raça. Tem gente que a acha que por a Anitta ter a pele mais clara ela deixa de ter sua herança africana no seu sangue, e isso é um erro, o que anularia a questão da apropriação cultural", disse no vídeo.

Além disso, ele lembra que o principal fator para se considerar apropriação cultural é a utilização de uma cultura ou costume, sem valorizar esse povo. É o branco valorizar a cultura negra, sem valorizar o negro. São os brancos valorizarem a cultura indígena, sem valorizar o índio. A apropriação acontece quando a indústria acha que a minoria não é comercial, mas a cultura daquela minoria é", frisa.

Por: Isabela Lopes - Jornal O DIA
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