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"œQuero levar sonhos para presídio", diz detenta que tem projeto de leitura

Elidiane Barbosa acredita que os livros podem trazer a liberdade para dentro na Penitenciária Feminina.

22/05/2015 18:00

Leitura: ação que conduz à liberdade infinita e à fuga da realidade. Presídio: lugar de sonhos interrompidos. Esta foi a contradição revelada em uma conversa que teve início dentro do simples auditório da Penitenciária Feminina de Teresina. Naquele momento, o local estava sem energia elétrica, mas era possível perceber facilmente a voz emocionada e ao mesmo tempo empolgada de Elidiane Barbosa, 38 anos.

Elidiane Barbosa, professora de Literatura, que tem um projeto de leitura voltado a detentas da Penitenciária Feminina (Foto: Assis Fernandes/ODIA)

A professora é acusada de ter matado o ex-marido em 2003. Condenada a 16 anos de cadeia, ela foi presa em Fortaleza, no início deste ano, e transferida para Teresina em fevereiro, onde divide uma cela com outras seis mulheres. Ela teve que se separar de suas duas filhas, do atual marido e da mãe. A falta momentânea de energia elétrica, que contribuía para o aumento do calor no ambiente, não calou o coração inquieto de uma mulher que tinha muito a dizer.

Antes de vir para o Piauí, Elidiane passou por uma experiência dentro da penitenciária de Fortaleza que foi essencial para não perder as esperança. O local tinha uma estrutura de biblioteca através da qual a professora poderia manter contato com o que sempre foi o seu mundo: as palavras.  “Em Fortaleza, eu percebi que as pessoas que estão lá, têm um coração maior do que aparentam. Eu conheci meninas que eram traficantes perigosas, mas que se preocupavam comigo, chegando a oferecer a própria comida para eu não passar fome. E assim eu fui entrando no mundo delas e acabei conhecendo pessoas maravilhosas”, explica.

Ao ser transferida, Elidiane sentiu falta do contato com a leitura e este foi o principal motivo para que ela sugerisse um projeto de leitura dentro da Penitenciária Feminina. A ideia foi recebida com simpatia pela diretora na unidade, Socorro Godinho, que imediatamente ofereceu ajuda e, posteriormente, recebeu apoio da Secretaria de Justiça. O projeto está em fase de finalização e deve ser implantado em breve.

Como levar sonhos para dentro do presídio?

Elidiane é professora de Literatura desde os 19 anos. Graduada pela UFPI, ela começou a se apaixonar pelas letras, sobretudo, com o estímulo de dois professores que ela faz questão de agradecer. “Anacir Calland e o Airton Sampaio foram minhas inspirações. Atualmente, aqui na penitenciária, eu já recebi várias visitas da professora Anacir, que está me apoiando no projeto e trazendo alguns livros”, conta a mulher, que se questiona como pode levar sonhos para dentro de um presídio.

A resposta veio através de um esboço escrito a mão. Com a ajuda de uma irmã fora da penitenciária, ela elaborou o projeto que consiste em ensinar o processo de produção textual para as outras detentas e acompanhar toda a progressão do texto, inicialmente com uma turma de dez alunas. “Daqui a dois, por exemplo, quero que as detentas notem o quando o texto delas progrediu”, pontua Elidiane.

A professora pretende também inserir no cotidiano de suas colegas um “Carrinho Literário” em que as presas devem ler um livro e responder um roteiro de perguntas sobre a obra. Ao final, a atividade acaba interferindo diretamente na pena das presas, que pode ser reduzida.

Desde o início das propostas, a penitenciária está recebendo livros didáticos e literários de algumas editoras e todos estão sendo catalogados e organizados com carinho por Elidiane, em um pequeno cômodo que fica ao lado da sala de aula da penitenciária. Apesar do projeto ainda não ter se iniciado, a ideia de começar a ler já causa ansiedade na detentas.

Além de contribuir com o processo de ressocialização e também com a redução da pena das detentas, os livros permitirão a elas terem sonhos e conhecer novos mundos dentro da pequena cela. Emocionada, Elidiane Barbosa recorda que já esteve em contato com muitas cidades, culturas e personalidades através da leitura. “A minha avó dizia: você não pode ir para São Paulo visitar sua tia, mas a gente pode ler sobre São Paulo. E aí, onde eu não conseguia ir, eu passei a ler. E eu penso assim: essas meninas não podem sair daqui, eu não posso pensar em mim e na minha dor, mas a dor delas eu tenho que tentar fazer alguma coisa e aí eu pensei na minha avó. Se elas não podem ir, elas podem sonhar e ler”, conclui, quase sem voz, e emocionada.

Mesmo sem o convívio diário com as duas filhas de 5 e 13 anos, Elidiane ainda acompanha o desenvolvimento escolar das crianças. “Elas trazem as redações delas para eu corrigir e contam as coisas que acontecem dentro da escola”, lembra.

Ela se preocupa em não deixar que a sua realidade dentro do presídio atinja a liberdade das meninas. “A mais velha sabe tudo, ela tem uma cópia de todo o processo. Deixo que ela mesma tire suas conclusões a respeito do que tem escrito ali. Para a menor, eu disse que eu estou aqui por causa da Justiça. Ela nunca me perguntou. Quando ela me perguntar, eu vou saber que ela está preparada para ouvir a história.”, explica.

Ex-detento ministra Oficinas de Noções Literárias dentro das Penitenciárias

Convidado pelo professor e escritor Wellington Soares, o ex-detento Luiz Alberto Mendes, autor de 5 livros, veio a Teresina ministrar oficinas na Penitenciária Feminina e na Irmão Guido, como parte do projeto “Leitura Livre”.

Luiz Alberto Mendes, ex-detento, autor de 5 livros, atualmente vive de literatura (Foto: Assis Fernandes/ODIA)

O escritor de “Memórias de um sobrevivente” ficou preso por mais de 30 anos e passou por momentos violentos e marcantes em sua vida. Dentro da penitenciária tomou gosto pela leitura e começou a escrever os primeiros traços de um estilo próprio, onde a temática envolve violência, memórias, solidão, desamparo e humanidade.

Oficina de noções literárias, ministrada pelo ex-detento Luiz Alberto nas penitenciárias (Foto: Assis Fernandes/ODIA)

Projeto Leitura Livre já foi implantado na Irmão Guido

Desenvolvido pela psicóloga Vanessa Moura, o projetoLeitura Livre surgiu com o objetivo de suprir a carência literária dos internos da Penitenciária Regional Irmão Guido. De acordo com a psicóloga, os detentos a procuravam e pediam algo para ler e ocupar o tempo ocioso. “Inicialmente, pensamos em criar uma biblioteca dentro do presídio, mas vimos que somente isso não seria garantia para que os internos tivessem acesso ao livro”, explica.

Detentos da Penitenciária Irmão Guido participam de projeto "Leitura Livre", promovido pela Sejus (Foto: Arquivo Pessoal)

O “Leitura Livre” foi implantado no mês de março, com apoio da Secretaria de Justiça do Estado. Cerca de 200 detentos manifestaram interesse em participar. Cada interno recebe um livro literário e tem um prazo de 30 dias para ler e apresentar uma resenha da obra. Além do trabalho escrito, após o fim do prazo estabelecido, é realizada uma roda de conversa literária, onde cada interno comenta livremente sobre o livro, num momento de socialização e debate dos aprendizados e viagens feitas através da leitura.

Vanessa Moura afirma que após a implantação do projeto, os detentos estão cada dia mais se interessando pelos livros. Para ela, ler é abrir portas da imaginação, de um mundo novo. “Apesar de ter o prazo máximo de 30 dias, alguns internos conseguem terminar em pouco tempos, de tão ávidos pela leitura”, afirma.

A Secretaria Estadual de Justiça pretende implantar o projeto em todas as unidades prisionais do Piauí. Para isso, está recebendo doações de livros, que podem ser feitas na sede da Secretaria, no Centro Administrativo.

Edição: Nayara Felizardo
Por: Aldenora Cavalcante (estagiária)
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