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Procura-se: "o desaparecimento é muito pior que a morte", desabafa mãe

Famílias detalham como convivem com a angústia diante da ausência de pistas e notícias de entes queridos desaparecidos

09/01/2021 09:56

“Quando minha filha desapareceu, eu achei que não iria conseguir viver. Uma mãe nunca está preparada para perder um filho, mas quando acontece uma fatalidade e o filho vem a falecer, tem todo um ritual de velório e enterro, e você sabe que ele não vai mais voltar. Agora, quando desaparece, é muito pior, porque você não sabe o que aconteceu, se está vivo ou se está morto, se está passando fome, frio e sua vida vira uma interrogação. O desaparecimento é muito pior que a morte”. Esse desabafo é de Ivanise Esperidião da Silva Santos, presidente e fundadora da ONG Mães da Sé.

Ela conta que, quando sua filha desapareceu, há 25 anos, não se falava sobre desaparecimento de pessoas; esse era um assunto e um problema desconhecido da sociedade e da mídia. A mãe desolada chegou a procurar diversos veículos de comunicação da cidade de Piratuba em São Paulo, local do desaparecimento, e a frase que ouvia era a seguinte: “senhora, este assunto não está em pauta”.

Foto: Divulgação/ ONG Mães da Sé. 

Então, durante 3 meses, Ivanise procurou sua filha sozinha e chegou no “limite da loucura”. Durante o dia, a mãe procurava Fabiana Esperidião nos hospitais e IMLs (Instituto Médico Legal); à noite, Ivanise ia para as ruas, procurava embaixo de viadutos, na Praça da Sé, onde tem muitas pessoas em situação de vulnerabilidade. Ela também chegou a ir à Cracolândia, em São Paulo, local de grande circulação de usuários de drogas. E, com o tempo, o desgaste físico e mental atingiu Ivanise. Ao final deste período ela chegou a pesar 39 quilos.

Ivanise foi hospitalizada por cinco dias e o médico lhe alertou quanto ao seu estado de saúde: “você só tem duas opções: levantar a cabeça e continuar a viver, ou morrer. E se morre, ninguém mais vai procurar sua filha”. Foi a partir desse conselho que Ivanise encontrou forças e decidiu que iria lutar para encontrar sua filha e que ajudaria outras mães na mesma situação. Assim, nasceu o trabalho da Organização sem fins lucrativos Mães da Sé.

Fabiana Esperidião da Silva desapareceu aos 13 anos, no dia 23 de dezembro de 1995. Ela saiu juntamente com uma amiga para ir à casa de outra colega de classe e, na volta para casa, cada uma seguiu o seu caminho. Fabiana, até hoje, não retornou ao lar, mas a mãe tem esperança de abraçar a filha novamente.

Perfil

O desaparecimento de pessoas é um problema social na opinião de Ivanise Esperidião, pois a maioria das pessoas desaparecidas são de famílias de classe muito baixa e desconhecedoras dos seus direitos. De acordo com a ONG Mães da Sé, 62% das mães que têm filhos desaparecidos são mães solteiras ou que foram abandonadas pelos companheiros após o desaparecimento dos seus filhos.

Já as crianças que desaparecem estão em situação de vulnerabilidade social, são filhos de mães que passam o dia trabalhando fora de casa, e os filhos mais velhos são responsáveis pelos irmãos. Então, a criança fica suscetível a aceitar um presente e o contato de um desconhecido. Além disso, muitas crianças são abordadas no caminho da escola, na porta do colégio ou ao ir a um estabelecimento comercial próximo de casa, e assim desaparecem.

Para Ivanise Esperidião, existe uma diferença entre as crianças que desaparecem por serem levadas por alguém e as crianças que desaparecem porque fugiram de casa. Neste segundo caso, o jovem ou adolescente não chega a ir muito longe e retorna em poucos dias para o lar, mas há um agravante nesta situação - a violação de direitos básicos.

“Essa criança é fácil de encontrar, mas se ela está sendo maltratada ou abusada sexualmente, esse desaparecimento pode ser recorrente. Eu vivo na Praça da Sé e escuto vários desses relatos, inclusive de adultos que conheci ainda criança no local”, explica Ivanise Esperidião.

Consequências emocionais e físicas do desaparecimento para as famílias

m 24 anos, a ONG Mães da Sé já cadastrou 11 mil famílias do Brasil e até de outros países. Destas, 5.018 pessoas foram localizadas, nem sempre com vida, mas a família pode enfim acabar com as dúvidas que permeavam no dia a dia.

“Este pode até ser um número pequeno, mas, para mim, tem uma relevância muito grande, porque é um trabalho de formiguinha. O desaparecimento é um problema inv isível diante da sociedade e das autoridades. Nossos filhos são apenas números e estatísticas, é um descaso a nível nacional. E quando você perde um filho, você tem várias consequências, a primeira é o desequilíbrio emocional. A depressão é a primeira sequela que aparece e se você não cuidar, ela acaba se transformando em outras patologias”, confessa Ivanise Esperidião.

Nestes 24 anos de atuação da ONG Mães da Sé, Ivanise conta que já perdeu 16 mães e três pais, no caso das mães, uma se suicidou, duas morreram em decorrência de um câncer e as outras 13 morreram por parada cardíaca ou infarto fulminante.

“O coração é o primeiro órgão afetado pela dor da perda, pois só quem passa por este problema sabe a dimensão da dor da incerteza, você se sente incapaz. E quando essas mães batem na minha porta, elas já passaram por todo tipo de humilhação, constrangimento e abandono”, afirma Ivanise Esperidião.

Na ONG, as mães depositam sua última esperança de reencontrar os filhos e chegam a questionar Ivanise, “como você consegue viver todos esses anos sem sua filha?”. Ivanise, sem muitas explicações, retribui: “vocês são a minha força, aprendo todo dia, com cada mãe”.


A dor da espera

O sofrimento de não saber onde se encontra seu ente querido também é o caso da família de Layanny Borges. Seu tio, Eloi José dos Santos Neto, desapareceu há 21 anos. Ele era um homem calmo, caseiro, sem muitas palavras. No dia do seu desaparecimento, ele estava na cidade de Teresina.

"O dia que ele desapareceu foi 31 de dezembro de 1999, foi pela manhã, por volta de 8h. Quando papai foi para cozinha, ele (Eloi) saiu como se fosse para o banheiro. Um tempo depois, meu pai disse: ‘Loia está demorando!’. Quando foi procurar por ele, não o encontrou mais”, relata Layanny, que foi criada na mesma casa que o tio. Quando Eloi desapareceu, aos 38 anos, Layanny tinha apenas 15 anos.

Foto: Divulgação/ Redes Sociais.

Ela explica que, na lateral da sua casa, tem um corredor e um portão para sair de casa, e Eloi teria pulado esse portão. As últimas informações que a família tem sobre ele é que teria ido à casa de um colega de profissão e pedido um chinelo, uma camisa e R$ 5, afirmando que iria sair de casa. Outro conhecido disse que Eloi andava pela rua desorientado.

O pai de Layanny fez o boletim de ocorrência e, na época, foi colocado o anúncio nos veículos de comunicação.A procura segue até os dias de hoje, sem muitas respostas e com a dor da saudade.


Enquanto o reencontro não vem

As novelas têm um impacto social importante na sociedade, principalmente quando abordam temas que são considerados tabus. Como exemplo, temos a novela Explode Coração, de Gloria Perez, que foi exibida de novembro de 1995 a maio de 1996. Ela trouxe à tona o desaparecimento de pessoas. Na época, os relatos das Mães da Cinelândia, como são conhecidas as mulheres do Rio de Janeiro que dedicam suas vidas à busca de filhos desaparecidos, gerou pânico e polêmicas em volta da temática. 

Mas essa realidade não acontece só no Rio de Janeiro ou em São Paulo. No Piauí, em 2018, 466 pessoas estavam desaparecidas, já em 2019 foi registrado o desaparecimento de 373 pessoas. Estes dados são do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. No levantamento, não consta o total de pessoas localizadas nos dois anos citados.

O caso de Adelaide Maria de Souza, conhecida como Adelle, é o exemplo de uma mãe que foi separada da filha após o nascimento. Adelle é da cidade de Floriano e foi levada para o Distrito Federal para trabalhar. De família pobre e a mais velha de 13 irmãos, a jovem aproveitou a oportunidade para ajudar os parentes. Ao chegar em Brasília, Adelle foi trabalhar como cuidadora de crianças na cidade de Ceilândia (DF). Nesta casa, conheceu

Aldecir do Nascimento, irmão de sua patroa, e eles começaram a ter um relacionamento. Logo, a família do rapaz foi contra o namoro e Adelle perdeu o emprego e foi morar de favor.

“Ela engravidou e teve uma filha. Adelle então começou a procurar emprego. No dia que conseguiu encontrar um local para trabalhar, o pai da criança, Aldecir do Nascimento, buscou a criança que estava sendo cuidada pela família de dona Cecília, uma conhecida de Adelle. Quando Adelaide chegou à tarde do trabalho e perguntou pela menina, disseram que o pai havia levado e até o cartão do berçário eles deram pra ele. Adelaide chorou muito, não conseguiu dormir, no outro dia já não foi trabalhar e, pela manhã, foi à casa de sua ex-patroa, bateu no portão, chamou, mas ninguém a atendeu”, explica Rose Ribeiro, amiga de Adelle.

Adelaide chegou a ver a criança algumas vezes com o pai, que não lhe permitiu ter contato com a filha. Quando a criança foi levada em 1984, ela ainda não possuía certidão de nascimento, mas o seu nome seria Elaine Cristina, escolhido pela mãe. Adelle nunca deixou de procurar a filha, chegou a voltar para o Piauí e ia com frequência no DF em busca de notícias, mas a família desapareceu com a menina por 36 anos.

Nessa caminhada de procura pela filha, Adelle conheceu Rose Ribeiro em uma rede social. Rose começou a divulgar, em novembro de 2020, a história da Adelaide em grupos de pessoas desaparecidas e, um mês depois do início das publicações, a filha de Adelle foi localizada.

“Hoje ela (a filha da Adelle) mora em Ribeirão Preto-São Paulo. Mas não quis falar com a mãe, eu já falei com ela. Mesmo assim, Adelle ficou feliz por saber que ela está viva e está bem, pois não sabia nada sobre ela. Creio que ela ainda vai falar com a mãe dela, é que ninguém sabe que história contaram para ela durante esses anos todos. Creio que ela está ainda pensativa. Quando falei com ela, chorou muito. Adelle também tem chorado muito, por ela (a filha) não ter ainda procurado pela mãe, ela acha que a filha não vai perdoá-la, mais creio que vai, tem que dar um tempo”, aposta Rose Ribeiro.

A história de Adelle é a esperança em meio a milhares de histórias de famílias que buscam notícias de seus entes queridos há décadas. Neste processo de procura, as redes sociais e Rose Ribeiro, de 55 anos, que mora em Brasília, foram essenciais no encontro da filha de Adelaide Sousa. Rose já ajuda famílias há alguns anos, ela faz o trabalho voluntariamente.

Sobre os desaparecidos, ainda existe outro contexto - as crianças que são levadas para adoção ilegal ou para o tráfico de órgãos. Pietro Assafe Dias Flores, por exemplo, foi doado por sua mãe, Cleiciane Dias Flores, que se arrependeu da doação após alguns dias. Até a manhã do dia 10 de dezembro de 2020, a mãe de Pietro só tinha nas mãos a certidão de nascimento do menino e uma foto do bebê de apenas dois meses no celular.

Cleiciane mora em Palmeirais, no Piauí, e seu filho nasceu na cidade de Floriano, no Hospital Regional Tibério Nunes. O bebê foi doado para uma mulher identificada como Maria Rodrigues Sousa, que mora em Brasília. Cleiciane teve um parto cesariano no dia 15 de outubro de 2020 e, dois dias depois, seu filho foi levado.

Cleiciane e seu filho Pietro após reencontro. Foto: Arquivo Pessoal 

“Eu queria doar ele de forma legal, pois eu tenho três meninos fora ele, e meu filho menor é doente do coração, eu sou mãe solteira e o pai nem registrou a criança. Então, no meu pensamento, eu achei que não iria dar conta. E quando eu estava grávida, a vereadora me procurou e falou que tinha uma pessoa que queria a criança e, para mim, esta forma de doar era normal”, diz Cleiciane.

Segundo a mãe, uma vereadora eleita na cidade de Palmeirais, teria feito a ponte entre ela, que queria doar a criança, e Maria Sousa, que levou o bebê. Maria chegou de viagem de Brasília no dia 3 de outubro e, no dia seguinte, a vereadora teria a levado, junto com outra prima, para conversar com Cleiciane.

No dia do parto, Maria acompanhou Cleiciane até o hospital de Floriano, de onde retornaram no dia 17 de outubro 2020. Na volta, a criança já não foi para casa com a mãe biológica. Cleiciane foi deixada em sua casa sozinha em Riacho dos Negros, zona rural de Palmeirais. A vereadora só retornou à casa de Cleiciane no dia 27 de outubro de 2020, para que ela fosse registrar a criança. Mas sete dias depois, Cleiciane se arrependeu de ter doado a criança e entrou em contato com a vereadora, que não lhe deu uma reposta.

“Dois dias depois, eu fui ao Conselho Tutelar, a responsável chamou a vereadora para conversar, mas ela negou tudo e disse que não sabia de nada e que iria cuidar da sua campanha eleitoral. Depois, fui para a Delegacia de Nazária e registrei Boletim de Ocorrência”, detalha Cleiciane Flores acrescentando que, durante o período em que não sabia sobre o paradeiro do filho, sonhava toda noite com Pietro chorando.

Desfecho

 Depois de 53 dias sem ter o filho em seus braços, enfim Cleiciane pode viver a sua maternidade. Pietro foi devolvido para a mãe biológica no dia 10 de dezembro de 2020. O bebê foi entregue ao Ministério Público da cidade de Amarante, e já está em Palmeirais com a mãe e os três irmãos.

De acordo com o delegado Thiago Silva, que responde pela delegacia de Palmeirais, o bebê foi deixado de maneira estranha na cidade de Amarante e o promotor autorizou a entrega da criança para mãe biológica. “A gente não conseguiu fazer o interrogatório da investigada pois o Ministério Público liberou ela”, afirma delegado.

As pessoas investigadas irão responder por subtração de incapaz e a mãe também pode responder administrativamente segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente.

A equipe do Jornal O DIA, entrou em contato com a vereadora citada nesta reportagem, mas não obteve retorno até o fechamento desta edição. Sobre a mulher que levou a criança, não tivemos contato. O espaço continua aberto para esclarecimentos.

Edição: Virgiane Passos
Por: Sandy Swamy
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