Água de má qualidade e aumento do risco de exposição a doenças. É esta a realidade de várias famílias que vivem no Povoado Alegria, na zona Rural Sul de Teresina, onde muitas residências ainda utilizam um mecanismo antigo de captação de água: os poços cacimbões. Estes poços consistem basicamente em escavações sem revestimento próximo a margens de reservatórios de águas superficiais.
Localizado muitas vezes nos fundos das casas, estes poços geralmente são escavados em áreas inapropriadas, como perto de fossas e cemitérios, por exemplo. A água que eles armazenam, também na maioria das vezes, possui qualidade duvidosa e às vezes vem contaminada com patógenos e materiais nocivos à saúde.

Moradora retira água de poço cacimbão no Povoado Alegria. (Foto: Jailson Soares/O Dia)
Foi isso que constatou a pesquisa desenvolvida pela estudante Francielly Lopes Silva, do Instituto Federal do Piauí (Ifpi). Sob orientação do professor Érico Gomes, a jovem investigou a qualidade água utilizada para consumo pelos moradores do Povoado Alegria e chegou à conclusão que, em alguns casos, o líquido é contaminado por coliformes fecais, o que coloca em risco a saúde da população daquela região.
A reportagem do Portal O Dia foi até o povoado acompanhada de Francielly e do professor Érico. No local, eles explicaram que esses poços cacimbões utilizam a água de um aquífero superficial, chamado de aquífero livre, e que este aquífero está sujeito a vários tipos de contaminação.

A estudante Francielly Lopes e o professor Érico Gomes no Povoado Alegria. (Foto: Jailson Soares/O Dia)
“Desde uma fossa, um galinheiro, um cemitério. Aqui não tem saneamento básico também e é um local onde tem concentração de potenciais poluentes. Todos esses contaminantes vão infiltrar nesse solo e no período da chuva, tanto o nível do lençol freático sobe, como a própria chuva, ao penetrar no solo, leva esses patógenos para a água. Então temos contaminação por diferentes fontes”, explica o professor Érico.
Ele lembra que, quando um morador cava um poço cacimbão, ele não percebe todos os fatores de contaminação nas proximidades e que isso acarreta num potencial para infectar a água que irá consumir. No local, por exemplo, foi constatada a presença de vários contaminantes, entre eles galinheiros, fossas sépticas e até mesmo um cemitério.
“Eles acham que estão com água de boa qualidade, mas isso tudo vai lentamente contaminando o aquífero. Geralmente consomem esse líquido sem fervura, então temos também a circulação de doenças simples de veiculação hídrica atacando a comunidade”, pontua.

Um dos contaminantes é um cemitério localizado a poucos metros dos poços cacimbões. (Foto: Jailson Soares/O Dia)
Francielly, autora da pesquisa, explica que estes poços cacimbões foram construídos no final da década de 1990, até que a Prefeitura construiu um poço que distribuiria água para toda a população. A partir do momento em que houve água nas torneiras, muitos poços ficaram inutilizáveis, alguns foram utilizados como fossas e outros abandonados e até mesmo soterrados.
Em sua pesquisa, Francielly encontrou 60 poços cacimbões, mais da metade deles desativados e alguns soterrados. Mas 22 ainda são utilizados para alguma coisa, como para armazenar água para consumo próprio, para lavar louça ou somente para aguar jardins. Para a análise, cinco poços foram selecionados: quatro cacimbões e o poço tubular que distribui água para toda a comunidade.

Francielly é a autora da pesquisa e moradora do Povoado Alegria. (Foto: Jailson Soares/O Dia)
“Todos os poços cacimbões deram contaminados, ou seja, fora da legislação. Porque a portaria de consolidação nº 5 do Ministério da Saúde diz que a água para consumo humano não deve ter bactéria do grupo coliforme, nenhuma bactéria em 100 ml de água. Se já estiver contaminada, tem que ter um tratamento prévio, cloração ou fervura, e a água desses poços não ficou dentro dos parâmetros”, explicou Francielly.
Um dos pontos analisados pela estudante na pesquisa foi justamente os locais onde estes poços cacimbões são construídos. Geralmente, os moradores cavam na área mais baixa da propriedade, onde a água chega com mais facilidade, e na parte mais alta da propriedade fica a casa e a fossa ao lado da casa. Por gravidade, aquele material migra através da água e vai contaminando o poço que está logo abaixo. Cria-se, assim, o cenário para a contaminação do aquífero superficial.

O professor Érico Gomes fala sobre os critérios que devem ser observados na construção de um cacimbão. (Foto: Jailson Soares/O Dia)
“Quanto mais perto do rio, mais
fácil encontrar a água, fica mais raso, por isso às vezes tendem a cavar num
local mais baixo da propriedade, porque o nível do lençol freático fica mais
perto da superfície. Dá menos trabalho cavar o poço, porque fica mais raso, mas
ao mesmo tempo a possibilidade de contaminação vai ser maior”, afirma o
professor Érico.
Quando se constrói um poço, o
ideal é isolar a parte superficial em até 12 metros. Esse isolamento, segundo
ele, impede que a água mais superficial caia dentro do poço. Até mesmo os poços
tubulares possuem uma sapata de proteção e a norma vigente diz que essa
estrutura tem que ser de concreto, de 1,5 metro por 1 metro em volta do poço
para impedir que as águas superficiais penetrem entre a parede da escavação e o
solo.
“Às vezes nem manilha tem. As
pessoas só cavam o poço e revestem com alguma madeira ou tijolos. Pela
proximidade com o cemitério, com fossas no entorno, provavelmente o lençol
freático deva estar todo contaminado pelo que a gente chama de pluma de
contaminação, que é a dispersão, dentro do lençol, de poluentes, além da
própria falta de saneamento, que é outra fonte de contaminantes”, destaca.

Alguns dos poços são feitos com manilhas. (Foto: Jailson Soares/O Dia)
Preocupa também, segundo os
pesquisadores, o fato de que em Teresina e muitos locais do Piauí esses poços
serem escavados em solos arenosos que são porosos e permeáveis, o que facilita a
infiltração da água com rapidez e também a contaminação mais rápida. Diante de
todo o achado, os pesquisadores lembram que é preciso que as comunidades tenham
cuidado de, ao ingerir a água de um poço cacimbão, ferver e fazer um tratamento
prévio para poderem consumir com segurança e sem riscos à saúde.
Moradores acreditam que a água é própria para consumo e usam como
alternativa
De acordo com os moradores do
povoado, a água dos poços cacimbões só é utilizada quando eles não podem contar
com a água do poço tubular instalado na região. Este poço foi construído pela
Prefeitura atende a 90% do Povoado Alegria, mas os moradores reclamam que a falta de
água nele é frequente, o que deixa como única alternativa o consumo da água sem
controle de qualidade dos cacimbões.
Um desses moradores é o
aposentado Antônio Chaves de Sousa, 73 anos, que mora no Povoado Alegria desde
que nasceu. Aposentado, o morador relata que construiu o poço da sua residência
há mais de 30 anos e, apesar de ser contemplado com o abastecimento do poço
tubular, o cacimbão ainda é uma opção quando falta água na comunidade.

O aposentado Antônio Chaves de Sousa retira água do poço cacimbão localizado em sua residência. (Foto: Jailson Soares/O Dia)
Apesar de ser um dos poços em que
foi constatada a presença de coliformes na pesquisa realizada pelo Ifpi, o
aposentado é firme em afirmar que a água do cacimbão é límpida e própria para
consumo. “O olho d’água dele fica perto da areia grossa e não “baldeia” de
jeito nenhum. Pode ser no inverno ou no verão, é sempre limpa. Ele é tampado
todo tempo para proteger, porque tenho quatro crianças em casa, até mesmo pra
não cair nada dentro”, afirma, tomando a água com as mãos e levando à boca.
“O olho d’água dele fica perto da areia grossa e não “baldeia” de jeito nenhum. Pode ser no inverno ou no verão, é sempre limpa" - Antônio Chaves de Sousa, morador do Povoado Alegria
Além de seu Antônio, outras 14
pessoas residem na casa feita de tijolos e sem reboco. De família humilde, o
aposentado relata que usa água de poços cacimbões desde criança. Somente com a
chegada do poço tubular que passou a pagar uma taxa de R$15 pelo consumo. “Eu
morava aqui na beira do rio com a minha mãe, lá também era cacimbão. A gente
carregava o galão num varal, um na frente e outro atrás”, relembra.

Aposentado Antônio Chaves de Sousa relata que usa água dos poços cacimbões desde criança. (Foto: Jailson Soares/O Dia)
O banho é um dos usos dados à
água dos poços cacimbões. Quando o abastecimento de energia é interrompido e a
água do poço tubular não chega às casas das famílias, moradores como o seu
Antônio utilizam os cacimbões para dar conta dos afazeres domésticos. Nesses
dias, até mesmo as crianças tomam banho com a água retirada desses poços. “Eles
gostam porque a água é fria. Você pode ver que não tem um granito”, finaliza o
aposentado ao dar banho em um dos seus bisnetos.

Aposentado Antônio Chaves de Sousa dá banho em uma criança da família. (Foto: Jailson Soares/O Dia
Posto de saúde fica atento a sinais de doenças relacionadas ao consumo
da água
Desconforto abdominal, ânsia de
vômito, náuseas, dores de cabeça, diarreia e às vezes até febre. São esses os
sintomas mais comuns encontrados nos pacientes que buscam atendimento no posto
de saúde do Povoado Alegria. Segundo os profissionais da unidade, eles estão
intimamente relacionados ao consumo de água sem o devido tratamento.
A equipe da unidade de atenção de
básica se mantém vigilante quanto a esses casos e, além do tratamento daqueles
que buscam o posto, eles também fazem o acompanhamento nas casas e um trabalho
de conscientização da necessidade de se ter certos cuidados com a água que eles
ingerem.

Posto de Saúde localizado no Povoado Alegria. (Foto: Jailson Soares/O Dia)
Michelle Leane, enfermeira e
coordenadora da UBS do Povoado Alegria, explica que as visitas são feitas quase
que diariamente e o foco são as crianças, pessoas idosas e puérperas, ou seja,
as pessoas consideradas mais vulneráveis em relação ao consumo desta água.
“Recebemos da FMS [Fundação
Municipal de Saúde] hipocloritos de sódio e os agentes fazem essa educação nas
residências, pra que eles usem esse hipoclorito. Eles podem pegar esse material
gratuitamente e para usar você dissolve um frasco a cada 3 litros de água,
inclusive para fazer a limpeza”, explica a coordenadora.

Michelle Leane, coordenadora do Posto de Saúde do Povoado Alegria. (Foto: Jailson Soares/O Dia)
Quando são detectados casos de
diarreia, por exemplo, os médicos da unidade imediatamente notificam à equipe
de vigilância da FMS que faz o acompanhamento. São investigados, nesses casos,
o que o paciente consumiu antes de sentir os sintomas, aplicado um tratamento à
base de soro e antitérmicos, em casos de febre, enquanto os profissionais vão
atrás da causa da doença.
Antigamente, os casos de doenças
relacionadas à contaminação da água e de alimentos consumidos pelos moradores
do Alegria eram mais frequentes, mas atualmente a demanda tem sido menor,
devido, principalmente, ao trabalho de conscientização feito pelos agentes de
saúde.
Quando são detectados casos de diarreia, por exemplo, os médicos da unidade imediatamente notificam à equipe de vigilância da FMS que faz o acompanhamento.
É isto o que pontua a agente de
saúde Ana Maria Morais. De acordo com ela, o principal problema é os moradores
pensarem que só porque a água que consomem está limpa só porque é límpida.
“Estou há 25 anos na área e
praticamente sei todas as casas que têm poço cacimbão e as que não têm. E a
gente vê que naquelas casas onde a água é consumida do poço cacimbão, os casos
mais frequentes de diarreia, de vômito, mal-estar. Hoje a gente trabalha em
cima da orientação: tem que usar o filtro, tem que usar o hipoclorito e como a
população está sendo educada, os casos de diarreia e infecção intestinal
diminuíram bastante”.

Ana Maria Morais é agente de saúde do Povoado Alegria há 25 anos. (Foto: Jailson Soares/O Dia)
Contraponto
Os populares disseram que a Águas
de Teresina que atende a região com a distribuição de água encanada. No entanto
a empresa negou.
O Portal O Dia procurou a Águas
de Teresina, responsável pela produção e distribuição de água na Capital e a
empresa disse que atende somente o perímetro urbano de Teresina, conforme prevê
o contrato de subconcessão, e que a região do Povoado Alegria não entra nessa
área de abrangência. A Águas de Teresina argumentou, por fim, que não pode
responder por aquela região porque não opera por lá.
Durante visita ao Povoado
Alegria, a equipe do O Dia, acompanhada dos pesquisadores do Ifpi, constatou
que o terreno onde está instalado o poço tubular está repleto de lixo,
incluindo lixo hospitalar. A avaliação dos pesquisadores mostrou que no local
não há sapata de proteção obrigatória para impedir a infiltração de poluentes
no solo e, consequentemente, no aquífero.
Procurada para falar sobre o poço
tubular da Prefeitura que atende ao Povoado Alegria, a Superintendência de
Desenvolvimento Rural (SDR) disse que os dois poços existentes na área foram
desativados pela própria PMT há 10 anos quando a Agespisa se tornou responsável
pelo abastecimento de água da região.

Local onde poço tubular está instalado é impróprio, dizem pesquisadores. (Foto: Jailson Soares/O Dia)
Por meio de nota, a SDR
acrescentou que o poço em questão deve ter sido reativado por terceiros. A
respeito da cobrança da taxa mínima aos moradores pelo uso da estrutura, o
órgão alegou que deve ser uma cobrança vinda dos próprios moradores que podem
ter reativado o poço porque não queriam arcar com o pagamento do
abastecimento por parte da Agespisa.
O órgão reiterou que não tem nada
feito nem administrado pela Prefeitura na região em relação a poços e que
enviará uma equipe ao local para apurar a situação e toma as providências
cabíveis.
Posto de saúde descarta material hospitalar em poço desativado
Durante a visita ao povoado
Alegria, a equipe do Portal O Dia flagrou ainda material hospitalar do posto de
saúde local sendo descartado em um poço desativado que fica atrás da unidade
médica, a poucos metros do poço tubular. Foram encontrados vários resíduos,
inclusive infectantes dentro de sacos identificados com o símbolo do serviço de
saúde.

Material infectante foi encontrado dentro de poço desativado. (Foto: Jailson Soares/O Dia)
Esta contaminação por material
hospitalar, segundo o professor Érico, é seríssima porque, diferente da
contaminação por coliformes, tem-se produtos químicos tóxicos de alto poder de
contaminação do lençol freático. Para piorar a situação, não se sabe há quanto
tempo este material está ali continuamente liberando elementos químicos na água.
“A gente não sabe a dispersão
desses contaminantes, não sabemos o tempo que estão aí, então é algo gravíssimo
para toda a comunidade, principalmente para essas casas que usam os poços
cacimbões. Ou seja, não basta a contaminação por fossas, ainda constatamos
contaminação por resíduos do posto de saúde em um poço aberto, abandonado, sem
depósito adequado de produtos tóxicos”, afirma o professor.
Atrás do posto de saúde da
comunidade também foi constatado o descarte irregular de lixo hospitalar e
residencial. O local fica entre os poços cacimbões e tubular. O Portal O Dia
procurou a FMS para comentar a respeito do descarte de resíduos do posto de
saúde no local. Por meio de nota, a Fundação disse que o local já foi
devidamente limpo e que acionou a Vigilância Sanitária para averiguar o
trabalho realizado e orientar quanto à disposição dos resíduos.

Lixo encontrado atrás do posto de saúde da comunidade. (Foto: Jailson Soares/O Dia)
A FMS comunicou ainda que irá
investigar o caso, informando de antemão que a UBS possui plano de
gerenciamento de resíduos sólidos e segue rigorosamente o descarte de seu lixo.
“Os servidores, rotineiramente, fazem a segregação e acondicionamento dos lixos
da maneira adequada e, posteriormente, o lixo identificado como comum é
recolhido pelo caminhão de coleta e o lixo identificado como infectante é
recolhido por empresa terceirizada, contratada pela FMS””, diz a nota.