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Piauí tem apenas 234 estudantes surdos matriculados na rede pública

Mesmo com as melhorias advindas do incentivo para uma escola mais inclusiva, os problemas a serem enfrentados ainda são muitos.

11/08/2018 08:09

O acesso das pessoas surdas à educação acontece como de qualquer outro estudante. Na matrícula, até esse primeiro estágio, na maioria das vezes, nenhuma barreira se apresenta para quem tem essa deficiência. No entanto, é no dia a dia da sala de aula que a educação se mostra ambígua. Para quem é ouvinte, os conteúdos estarão dispostos com facilidade, mas para quem é surdo, nem sempre o processo é simples. Essas dificuldades fazem com que a não-procura e a evasão escolar para pessoas com surdez sejam enormes. No Piauí, a rede estadual atende 144 alunos surdos em todo Estado e, em Teresina, a rede municipal conta com 90 alunos. 

Os alunos da Unidade Escolar Matias Olímpio têm acompanhamento com intérprete de Libras. (Foto: Jailson Soares/O dia)

O professor José Filho, o Fialho, acompanha essa difícil realidade de perto há 16 anos. Atualmente responsável pelo Atendimento Educacional Especializado (AE) da Unidade Escolar Matias Olímpio, no bairro Porenquanto, ele lembra que, mesmo com as melhorias advindas a partir da sistematização do incentivo para uma escola mais inclusiva, os problemas a serem enfrentados ainda são muitos. “A falta do intérprete em Libras dificulta o processo de aprendizagem. Às vezes, o professor fica sozinho com o aluno surdo e isso impede totalmente aquele aluno entender algo, ele se torna um copiador alheio ao assunto. O ideal seria termos professores bilíngues, que pudessem transmitir o conteúdo para todos na sala, mas isso não acontece”, afirma. 

Em cada apontamento, Fialho se mostra nitidamente apaixonado pelo processo de educação e relembra como tomou a bandeira da acessibilidade e da inclusão como uma luta particular. Tudo começou quando, assim que deu entrada no ensino estadual como professor de geografia, ele se deparou com uma aluna surda na sala. “Eu chamei Maria dos Milagres e ninguém respondeu. Vi os colegas sorrindo e foi então que me informaram que ela era surda. A partir daí, eu me tornei um chato na Secretaria de Educação, porque tinha que buscar um jeito dela poder aprender como os outros. E aí toda essa história começou”, lembra. 

O professor José Filho acompanha a difícil realidade dos surdos nas escolas há 16 anos. (Foto: Jailson Soares/O Dia)

Na Unidade Escolar Matias Olímpio, existem cerca de 40 estudantes com surdez, que são acompanhados por intérpretes em sala de aula e encontram no AE a possibilidade de estudar no contraturno. Fialho, que já tem especialização em Libras, contribui para que os alunos complementem o aprendizado em áreas como português, matemática e demais disciplinas. “Nós precisamos de mais, teríamos que ter uma psicóloga bilíngue, uma assistente social e uma fonoaudióloga, a educação só se completa em rede. O professor do AE só ganha R$ 150 de gratificação. É preciso que melhoremos muito para alcançar uma educação verdadeiramente inclusiva”, expõe. 


Nesse processo de busca por uma educação de qualidade para pessoas surdas, não só professores e intérpretes se debruçam sobre as muitas tentativas de buscar cenários mais eficientes, mas a própria família dos alunos tem se tornado cada vez mais participativa e vigilante.


Estrangeiros na própria terra

De mochilas nas costas, Salvimar de Jesus, 25 anos, chega com passos calmos para mais um dia de aula na Universidade Federal do Piauí (Ufpi). Como todos os dias, o caminho que faz da Residência Universitária, onde mora, até o bloco onde terá acesso a mais conhecimento, é feito com uma certeza que o faz estufar o peito quando conta: chegar até ali foi uma vitória que, por muito tempo, ele pensou não ser possível.


Salvimar superou todas as barreiras para ingressar no ensino superior. (Foto: Jailson Soares/O Dia)


 Por ser surdo, para ter acesso ao ensino superior público, o jovem teve de superar a barreira da comunicação - peça fundamental para o seu desenvolvimento em sociedade. E é assim que, por conta da linguagem, os surdos se tornam estrangeiros em sua própria terra. Mas a incapacidade de se comunicar não é de Salvimar. Como pessoa surda, ele se expressa e se comunica muito bem. Envereda longas explicações para contar sua trajetória de tentativas dentro do ensino básico e médio, em Codó no Maranhão, quando vivenciou, repetidas vezes, a exclusão dentro da própria sala de aula pela falta de um ensino verdadeiramente inclusivo.

As lacunas na educação para a pessoa surda acontecem por diversos fatores, um deles se dá pelo acesso à Língua Brasileira de Sinais (Libras) dentro da sua formação. A falta de intérpretes que possam fazer a ponte entre o que os professores dizem em sala de aula de modo totalmente compreensível para quem é ouvinte, impede a compreensão do que é necessário saber em cada fase da vida educacional. “A maioria dos materiais didáticos estão preparados para atender um tipo de pessoa, que é a que fala uma determinada língua, no caso, a língua portuguesa. Então, a gente fica à margem dessa educação por conta desse material e da comunicação dentro da escola que não acontece”, relata. 

Desde 2002, por meio da sanção da Lei n° 10.436, a Língua Brasileira de Sinais (Libras) foi reconhecida como meio legal de comunicação e expressão no País. A legislação determinou também que deve ser garantido, por parte do poder público em geral e empresas concessionárias de serviços públicos, formas institucionalizadas de apoiar o uso e difusão de Libras como meio de comunicação objetiva. Mas do que é estabelecido em lei para o que acontece na vida real há um verdadeiro abismo. “A maioria das vezes, era só eu como aluno surdo na escola e me sentia único naquele ambiente, mas não pelo lado bom. Eu sentia dificuldade em aprender. Sempre tinha alguém que vinha com aquela visão assistencialista de ‘vamos, eu te ajudo’, mas você quer aprender sozinho, porque tem essa capacidade”, pontua. 

Desde 2002, por meio da sanção da Lei n° 10.436, a Língua Brasileira de Sinais (Libras) foi reconhecida como meio legal de comunicação e expressão no País. (Foto: Jailson Soares/O Dia)

A primeira vez que o jovem teve acesso completo a um material adaptado a sua condição, ele lembra como um marco: a prova do vestibular. “Eu nunca pensei em continuar os estudos, mas depois, conheci uma professora e ela perguntou se eu queria dar um passo a mais na minha educação. Ela me ajudou na inscrição porque era muito complicado entender tudo. Fiz a prova totalmente em libras e foi muito importante aquele momento. Fui aprovado para o curso de Libras e aqui na Ufpi eu conheci outro mundo”, comemora. 

Salvimar está no terceiro período do curso de Libras da Universidade Federal do Piauí. Ele lembra que coisas simples para a maioria das pessoas, como poder fazer a divisão de um trabalho com os colegas, entender a globalidade do conteúdo que é transmitido e ter como questionar e intervir na aula, são, para ele, de extrema recompensa.


 Ultrapassando todas as dificuldades, Salvimar consegue, diariamente, afirmar com sua própria trajetória o que diz querer que a sociedade entenda de uma vez por todas: que todo surdo é capaz.


A luta pelo direito de estudar 

Aparecida Aragão é uma das mães combativas que luta para assegurar o direito da filha em ter acesso à educação de forma plena. Uma missão assumida desde quando ela começou a perceber que a sociedade, de maneira geral, não estava preparada para inserir uma pessoa com surdez em seus diferentes núcleos. 

Desde que a filha, Ana Beatryz, carinhosamente conhecida por Bia, começou a ter acesso à educação institucional, a mãe acompanha de perto o processo de ensino que é ofertado para ela. E usar a expressão “de perto” é uma das maneiras mais literais de explicar o caminho percorrido por mãe e filha. É que em um dado momento desta trajetória de ensino, Aparecida largou tudo para que Bia continuasse tendo acesso à educação. Isto porque, após mudar de escola para garantir uma maior proximidade e a continuidade de acompanhamentos de saúde, a mãe teve de se tornar intérprete da filha durante quatro anos. 

Aparecida, mãe de Bia, se tornou intérprete para poder acompanhar a filha na escola. (Foto: Jailson Soares/O Dia)

“Ela estudava na Escola Viva, que tinha o intérprete e o acompanhamento necessário, mas era no Centro e tínhamos que fazer fono, curso de libras... a localização se tornou inviável. Tive que matricular ela em uma escola particular perto e como não tinha intérprete de libras, eu me ofereci a ser de forma gratuita para a escola. Tranquei meu curso e acompanhei ela do terceiro ao sexto ano”, destaca. Aparecida, que mora com a família na zona Sudeste da Capital. O esforço da mãe tem mostrado resultados. Bia tem se tornou exímia aluna, que gosta de aprender e se desafiar em experiências educacionais. Prova disso é que, entre 40 alunos ouvintes, ela alcançou o terceiro lugar na primeira fase da Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas – OBMEP. 

Ver os avanços da filha deu forças para que a mãe pudesse também se dedicar um pouco para si, na conclusão do curso de Administração trancado há  quatro anos. Foi quando ela decidiu procurar a rede de ensino público. Mesmo que o artigo 205 da Constituição Federal de 1988 destaque que "a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo  para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho", a legislação não funciona tão bem na vida real. 

Aparecida procurou a rede municipal de educação para matricular a filha que iniciaria o 7º Ano do Ensino Fundamental neste ano. Na escola  buscada, ela ouviu, primeiro, um não. “A diretora falou que a Semec (Secretaria Municipal de Educação) não oferecia intérprete. E eu questionei: como assim não oferece? Tive que entrar no Ministério Público e eu mesma buscar garantir o direito da minha filha, porque, na escola, encontrei portas fechadas”, explica Aparecida.

Segundo a Semec, apesar de não oferecer intérpretes, os alunos com surdez têm atendimento especializado na escola e a Secretaria disponibiliza curso de libras para professores, diretores e pedagogos. “A pessoa que colocaram não era intérprete e a Bia ficava muito perdida. Foi quando resolvi que mudaria de escola”, explica. A mãe, então, transferiu a filha para a escola Matias Olímpio, da rede estadual de educação. Na nova escola, assim como os outros cerca de 40 estudantes, Bia também tem enfrentado as dificuldades pela escassez de instrutores e o não preparo do corpo escolar para dialogar com os alunos surdos.


Para Aparecida, que tem acompanhado todo o primeiro momento de volta às aulas, fica a certeza de que a luta pela educação inclusiva é contínua. 


“Se a gente não correr atrás, as coisas não andam, falta sensibilidade nas pessoas, eu acho. Mas não vamos desistir”, garante. Por não desistir, Bia se mostra uma aluna cada vez mais compenetrada. Ao ser perguntada qual a disciplina favorita, não titubeia em garantir: é matemática. 

Instrutores são celetistas e ganham um salário mínimo 

Fundamentais para garantir o processo de aprendizado entre o aluno surdo e o professor, os intérpretes de libras na educação estadual do Piauí são contratados apenas como celetistas e recebem um salário mínimo para cumprir uma jornada de 40 horas semanais. Segundo a Gerência de Educação Especial da Secretaria Estadual de Educação (Seduc), são 81 intérpretes e instrutores de Libras contratados no Estado. Além da pouca valorização da carreira, os profissionais dizem enfrentar dificuldade no próprio exercício da profissão dentro das escolas. 

Mariana Barbosa revela que a falta de valorização da carreira está fazendo os profissionais migrarem para outros estados. (Foto: Jailson Soares/O Dia)

“Nós lutamos bastante porque há pouca acessibilidade dentro da escola. Os professores, diretores, o porteiro, não estão preparados para lidar com o aluno surdo, então sempre somos chamados quando o diretor tem que falar ou outra pessoa”, destaca Mariana Barbosa, que é intérprete há quatro anos. 

Segundo a profissional, o baixo salário pago no Piauí à categoria tem feito os intérpretes buscarem oportunidade em outros estados, como o Maranhão, que contrata intérpretes por concurso público pagando o piso da categoria, estimado em cerca de R$ 2.500. Mariana destaca que, pela contratação ser por contrato temporário no regime celetista, os profissionais não têm uma garantia de receber seus dividendos. “Todo fim de ano tem questão do vencimento dos contratos e, quando vão iniciar as aulas, a contratação sempre começa depois que as aulas iniciaram. Os alunos saem prejudicados e nós também, que só começamos a receber a partir de março”, afirma.

Contraponto

A Seduc informa que sobre a contratação dos intérpretes de libras, essa profissão ainda não está prevista no quadro de efetivos do Estado porque não faz parte do Estatuto e Plano de cargos, carreira e vencimento dos trabalhadores em educação básica do estado do Piauí  (em vigor desde 2006). Caso o plano de carreiras seja modificado, a profissão poderá ser inclusa e assim regulamentada. Portanto, não há obrigatoriedade de concurso público, uma vez que são regidos pela lei estadual de contratação temporária 5.309/2003 e a remuneração segue o estipulado pelo decreto 15.547/2014, que é o salário mínimo.

Por: Glenda Uchôa
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