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O futuro será verde ou não será II

Confira o texto publicado na coluna Piauí Presente no Jornal O Dia.

22/10/2019 12:10

A encíclica Laudato Si do Papa Francisco segue o mesmo método de elaboração dos “documentos pontifícios” (aqueles de responsabilidade do próprio Papa) dos últimos tempos. Além das considerações teológicas e pastorais sistematizadas em um ou mais capítulos, mas perpassando todo o documento, há a contextualização histórico e sociológica do tema, o que Clodovis Boff chama “a mediação sócio-analítica”.

Na Laudato Si, além do capítulo especificamente teológico (Cap. II – O Evangelho da Criação) e do capítulo pastoral (Cap. VII – Educação e Espiritualidade Ecológicas), o Papa dedica dois capítulos a considerações de ordem mais histórico-sociológica: Cap. I - O Que Está a Acontecer à Nossa Casa e o Cap. III - A Raiz Humana da Crise Ecológica, que preparam a contribuição principal no Cap. IV – Uma Ecologia Integral.

Mudança climática, perda da biodiversidade, resíduos e poluição, a questão da água são lembrados. Mas o Papa já chama a atenção para a consequente deterioração da qualidade da vida humana com degradação social, atingindo os mais pobres e desigualdade planetária, discriminando os países. Adverte ainda para a fraqueza das reações ao problema por parte dos poderes públicos e da própria sociedade.

O que chama mais atenção na sua visão integral, não é a consideração das dimensões da ecologia: econômico-social (“Quando falamos de «meio ambiente», fa-zemos referência também a uma particular rela¬ção: a relação entre a natureza e a sociedade que a habita.”) e cultural (“A par do património natural, encontra-se igualmente ameaçado um património histórico, artístico e cultural.”); mas a amplitude de sua visão numa perspectiva filosófico-antropológica.

“Num dos extremos, alguns defendem a todo o custo o mito do progresso... No extremo oposto, outros pensam que o ser hu¬mano, com qualquer uma das suas intervenções, só pode ameaçar e comprometer o ecossistema mundial... Entre estes extremos, a reflexão deveria identificar possíveis cenários futuros, porque não existe só um caminho de solução. Isto deixaria espaço para uma variedade de contribuições que poderiam entrar em diálogo a fim de se chegar a respostas abrangentes.”

E Francisco não hesita em levantar dois pontos fundamentais: a) a transformação da tecnologia, expressão da criatividade do homem, em paradigma tecnocrático homogêneo e unidimensional, raiz do produtivismo; b) o antropocentrismo moderno como matriz de uma “cultura da pseudofelicidade” que degrada a individuação em individualismo egoísta e de uma “cultura do descarte”, que leva ao consumismo.

“Não haverá uma nova relação com a natureza, sem um ser huma¬no novo. Não há ecologia sem uma adequada antropologia. Quando a pessoa humana é con¬siderada apenas mais um ser entre outros, que provém de jogos do acaso ou dum determinismo físico, corre o risco de atenuar-se, nas consciên¬cias, a noção da responsabilidade”. Por outro lado, um antropocentrismo desordenado não pode ser substituído por um “biocentrismo” ou “geocentrismo”.

O enfrentamento “radical” da questão ecológica exige a “mudança do estilo de vida”, “uma conversão ecológica”. Estão em jogo a relação Homem/Sociedade  e Natureza e o estilo de vida e de convivência.

A crítica ao capitalismo - como forma específica de produtivismo e de consumismo – se situa no contexto desse debate mais amplo sobre uma mudança civilizacional, que vai além da mudança de regime econômico-social. 

As ciências sociais também fazem esse debate e ainda têm como fontes teóricas inspiradoras as elaborações de Karl Marx e Max Weber. Capitalismo e Modernidade são processos imbrincados, mas com lógicas distintas. 

A modernidade é uma civilização de base científica e tecnológica, expressão da centralidade cultural da Razão: ciência é conhecimento racional; direito e burocracia administrativa são formas de dominação política racional; e o próprio capitalismo através do cálculo do custo-benefício e da contabilidade são economia racional. Tudo isso é Weber. O socialismo se insere no mesmo paradigma da racionalidade, com mudança da propriedade e da apropriação do excedente (lucro), que Weber achava que só funcionaria com uma dominação burocrática. 

É claro que se a ação se torna racional apenas em relação aos fins, se torna ação instrumental, ofuscando a ação racional em relação aos valores. E sem valores, sem o sentido da ação, os atores se tornam “especialistas sem espírito”.

Marx é um entusiasta da tecnologia como fruto da ciência. A dinâmica da história depende das revoluções tecnológicas, do desenvolvimento das forças produtivas. Mas a história tem também outro motor: a luta de classes. A revolução é a liberação do desenvolvimento das forças produtivas da dominação de classe. E levará ao atendimento das necessidades e ao reino da abundância, quando o trabalho compulsório não será mais necessário, o comunismo como utopia possível.

A questão é que o desenvolvimento das forças produtivas se confundiu (no pensamento de Marx) e tem se confundido (no desenvolvimento real da história) com a acumulação de capital, ou melhor foi hegemonizada pela necessidade de acumulação de capital que é ao mesmo tempo um processo de valorização do valor (de lucro). Basta lembrar que os maiores laboratórios hoje são propriedade ou financiados por grandes corporações empresariais.

 A luta ecológica precisa fazer essa distinções. O capitalismo tendo como motor a acumulação de capital se reproduz apesar das crises e torna-se unidimensional, com sérias consequências sociais e ecológicas. Mas o espírito prometeico, a motivação de dominação da Natureza, ao se tornar unidimensional, cria por si sérios problemas ecológicos. A superação o problema tem a ver com a regulação ou superação do capitalismo, mas tem a ver com o sentido da técnica na vida humana, com o ideal da Boa Sociedade, com a concepção de Felicidade, com civilização. A Ecologia Integral proposta pelo Papa Francisco se situa nesse nível do debate.

Fonte: Antonio José Medeiros - Sociólogo, professor aposentado da UFPI
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