Portal O Dia - Notícias do Piauí, Teresina, Brasil e mundo

WhatsApp Facebook Twitter Telegram Messenger LinkedIn E-mail Gmail

O homem coxo

Ele não usa bengala, se equilibra no antebraço dela

01/12/2015 07:44

Imagem: Google

O homem é manco, a mulher dele, não. Ele não usa bengala, se equilibra no antebraço forte dela. Os dois riem dos livros expostos nas prateleiras da livraria da Álvaro Mendes. E juntos, folheiam algumas edições de Direito Penal, mas nada compram e nada levam. Com a perna maior do que a outra, o homem alto e gordo, sai da livraria apoiado no antebraço da companheira baixa e magra, e pelo visto, ela nem sentir o sobrepeso do companheiro, sente.

Se dirigem ao Banco do Brasil, também na Álvaro Mendes. Eu os sigo como se fosse um detetive prestes a desvendar um mistério. Observo-os de longe. Sim, o casalzinho merece ser perscrutado por mim. O homem coxo puxa do caixa rápido, o extrato bancário repleto de letras e números, e logo mostra o papel à amada. Ela faz sinal positivo para que ele saque o dinheiro. Com a grana no bolso, ambos saem da agência ancorados um ao outro, em direção à beira do rio Parnaíba.

E seguem lentamente entre os transeuntes apressados. De repente, param e decidem entrar numa loja de departamento. Na secção masculina, o perneta exibe camisas de botões e camisas polos para a acompanhante, que ora aprova umas e ora desaprova outras. Com as peças conjuntamente escolhidas, a mulher encaminha, cuidadosamente, o coxo até a entrada do provador. De lá, ele segue trôpego, como os bêbados da Paissandu, a procura de um espaço exíguo para experimentar as roupas.  

Agora com as mãos ocupadas, a mulher carrega as compras ao mesmo tempo em que segura o braço do sujeito com defeito físico. Porém, observando o seu semblante, seu oficio não parece ser um fardo, ao contrário: há contentamento naquele sorriso que não para de desabrochar. E assim, os dois pombinhos, rumam felizes ladeira abaixo como quem vai para o SESC da Avenida Maranhão. 

Entre o SESC e o SETUT está à parada de ônibus do casal, ao final da peregrinação, os amantes chegam exauridos. Um passageiro que espera o coletivo sentado, cede seu lugar ao homem manco que não se aguenta mais em pé. Num tom simpático, ele agradece profundamente a delicadeza. Por sua vez, a mulher amada recorre ao vendedor ambulante, e compra para o amado, água de coco. 

O homem capenga toma a água com sede de deserto, enquanto a esposa, cuidadosa, lhe enxuga a fronte inundada de suor. O lenço é improvisado, a troca de afeto entre os dois, não. Há muita cumplicidade ali, uma sintonia contagiante. E a preocupação com o bem-estar de um para com o outro, é o ponto máximo da arte de amar.

O ônibus chega, a linha é Universidade Circular 1, e aquele modelo de amor vai embarcar. Ele tem dificuldade para subir os degraus, porém, ela está rente a ele, e ajuda-o a enfrentar mais uma barreira. A condução se afasta no sentido zona norte, lá onde a paixão não finda, onde a ternura reside sem as deficiências cotidianas. 

Os personagens desta crônica são agraciados pelo amor incondicional, aquele que supera as diferenças. O inverso de Eugênia e Brás Cubas, personagens de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. A primeira é coxa, o segundo, não. E por ser coxa, é deixada de lado, abandonada. "Por que bonita, se coxa? Por que coxa, se bonita?". Ainda bem que essa linda obra machadiana é apenas ficção, e não um manual a ser seguido. 

          


                 

   

                            

Mais sobre: