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Professora, o que você é, quem você é?

Sou uma mulher de 71 anos. Mãe de um menino e uma menina. Avó de dois netos.

23/01/2020 12:28

Após explanação sobre a magia da leitura e da escrita num grupo de jovens prestes a se submeter ao Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), uma adolescente visivelmente embaraçada, me pergunta: “professora, o que você é? Quem você é?” É a minha hora de constrangimento. Devo expor a alguém tão jovem o que sou. É a chance de expressar o que penso que sou e quem sou. Isto porque, como reitero, com veemência, nossa autoimagem é sempre tridimensional. Somos o que acreditamos ser. Somos o que desejamos ser. Somos o que as outras pessoas descobrem em nosso ser. Transcorridos alguns segundos, a menina prossegue à minha frente e seus olhos de um verde cristalino fitam-me à espera da resposta, que tarda a chegar. Mas não há como fugir. Continuo sem saber o que dizer ou como dizer. É sempre complexo e difícil falar sobre o que somos ou sobre quem somos. 

Aceito o desafio e lá vou eu em busca de sintetizar uma vida exaurida de amores, paixões, alegrias e tristezas. Uma vida igual a de qualquer um: plena de contentamentos em meio às dores que espocam aqui e ali. Existir junto aos outros ou com os outros. Existir só.  Irremediavelmente só nas dores mais profundas, nas cicatrizes entreabertas, nos sonhos vividos, nas esperanças desfeitas.

Mas arrisco. E lá vou eu. As palavras saem aos borbotões. Sou uma mulher de 71 anos. Mãe de um menino e uma menina. Avó de dois netos. Irmã de dois anjos travestidos de senhor e de senhora, porque um terceiro já partiu para longe. Tia de um sobrinho de sangue e muitos de coração. Amiga de meus amigos. Professora desde sempre: minha família brinca ao dizer que “nasci professora”. Sou bibliotecária, jornalista, leitora, escritora, contista, cronista – numa sequência livre de amarras. Mas, confesso: não sei o que sou, nem que sou! Sei, porém, o que não sou. Apesar de ter vivido até hoje nos palcos da vida que são as salas de aula, não sei o que dizer, menina querida. Olho com orgulho os corajosos que se autorrotulam com adjetivos magníficos e atributos invejáveis. Olho para dentro de mim. Vejo uma mulher que não sabe quem é.   

Quem sou eu? Uma mulher instalada na velhice, mas com uma criança irrequieta dentro de si, que ainda acredita no amor, nos sonhos e no outro. Quem sou eu? Uma mulher sempre com o dedo no gatilho para apontar e apostar em novos caminhos. Quem sou eu? Uma mulher que carrega consigo uma mochila de sonhos que se sobrepõe a uma mochila de desilusões. Quando criança, prefiro livros a bonecas. Quando adolescente, prefiro livros a namorados. Mas quando me olho no espelho (odeio espelhos) antigo do meu quarto de mulher só, com dois casamentos fracassados nos ombros pesados, agora, sim, me reconheço: menina frágil de olhos no futuro, vulnerável a migalhas de atenção. 

Com a convicção de que é impossível analisar alguém num único momento de vida, haja vista que passado, presente e futuro se fundem, afirmo que, hoje, o que sou tem muito a ver com meu passado e com o que serei amanhã. Imperfeita como qualquer ser humano, sou perseverante, idealista, inquieta, irrequieta, sapeca, profunda, irreverente, verdadeira, preocupada com as outras pessoas, leal, aberta a inovações, metódica, passional e intensa: amo (ou não) por inteiro. Nada pela metade. E mais, mero detalhe: há anos e anos, não uso pente ou escova nos cabelos que vivem aos deus-dará, obedecendo à ordem dos meus dedos ágeis. 

Paraibana, cresci entre o eixo Recife – João Pessoa, mas aqui vivo há muitos e muitos anos. Além do Piauí, adoro mil coisas e a vida. Minha casa é meu refúgio preferido, onde me perco entre minhas obras de arte e meus livros, que vão transformando meu cantinho num baú de doces lembranças. O voluntariado me acalma e me faz bem. A música de qualidade me transporta para o além. Amo cinema e teatro a tal ponto que já me arrisquei em ambos. Adoro praia e campo. Durante muitos anos, fiz tapeçaria quase que compulsivamente. Ensaiei pintura de porcelana porcamente. Amo cozinhar. Amo viajar. Como gosto de idiomas! Sinto-me camaleão.  Luto como leão. Sobrevivo como um pássaro azul.

Perdoe-me, menina querida. Sou tantas em uma só! Temo que mais do que te respondi, te confundi!

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