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Meu querido filho

Maria das Graças TARGINO é jornalista e pós-doutora em jornalismo pela Universidad de Salamanca / Instituto de Iberoamérica Contato: [email protected]

23/01/2019 07:18

Na Tunísia, pequeno país da África do Norte, 99% da população seguem a religião islâmica, o que facilita a expansão do Estado Islâmico em seu radicalismo doentio e perverso. País pouco conhecido no Ocidente, sua realidade é propalada, pelo menos em parte, graças ao filme “Meu querido filho.” Weldi (título original) marca presença no cinema, nas grandes telas mundo afora, desde maio de 2018 e em algumas nações, como Brasil, desde janeiro de 2019, incluindo os cines de Teresina, Piauí. Embora conste como selecionado para a chamada “Quinzena dos Realizadores 2018” (Cannes 2018) e para a “42a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo”, sua ficha técnica não traz nomes conhecidos para o grande público nacional. Sob direção e roteiro de Mohamed Ben Attia, cuja obra anterior mais conhecida é “A amante”, conta com Dora Bouchoucha Fourati na produção.

Apesar de ter como foco a Tunísia, o drama, coprodução Tunísia, Bélgica e França, trata de temas universais. Famílias sobrevivem em meio à imensa solidão e ao vazio existencial. Pais e o filho único quase não se tocam. Quase não se olham. O amor está presente na preocupação insana e intensa em torno dos estudos do garoto às vésperas do vestibular para o tão sonhado ingresso na universidade. Eis a primeira verdade universal – instintivamente, tendemos a impor aos filhotes nossas aspirações, que, com certa frequência, não coincidem com as deles. No caso, enquanto a mãe Nazli, vivida por Mouna Mejri, e o pai Riadh (Mohamed Dhrif), motorista do porto de Tunes (capital da Tunísia), sonham com a vida acadêmica e o futuro promissor do filho Sami (Zakaria Ben Ayyed), atribuindo suas frequentes enxaquecas e seu visível quadro depressivo às tensões do exame, de forma sorrateira e bem planejada, o jovem, 19 anos, envolve-se na teia do recrutamento do Estado Islâmico. Quando tudo parece tranquilo, após consulta a um psiquiatra, simplesmente, some e segue rumo à Síria, país que enfrenta violento conflito armado desde 2011, sob a liderança do Presidente Bashar Assad em conluio com a Rússia.

Em que pese o cerco dos pais ao menino adorado, na verdade, único elo existente entre o casal, os três pouco se conhecem. O amor se mantém lá fora, sozinho e deslocado. Louco de dor ante o sumiço de Sami, Riadh, a esta altura, cidadão aposentado, como “chefe” de qualquer outra família de classe média baixa vive as agruras de sobreviver. Decidido, vende o único bem (um carrinho velho) e segue numa viagem para lá de perigosa em busca do filho. Encontra-o, mas não consegue afastá-lo da intenção de seguir adiante. Após algum tempo, casado, com um bebê no colo e mulher ao lado, Sami entra em contato com os pais via Skype ou tecnologia similar para contar as “novidades.” Mais adiante, a morte o leva.

Nazli se afunda, mais e mais, num trabalho em cidade distante, até que marido e mulher concluem que não há salvação para um casamento que deixara escapar o amor. E eis o ponto alto de “Meu querido filho”: em vez de demonizar a atitude do jovem, o diretor tunisiano mostra como, diante da tragédia de perder seu único filho, aquele homem simples consegue representar o sentimento de desmoronamento que acomete “n” famílias, quando perdem seus entes queridos para o terrorismo ou para outros males do mundo atual. Riadh consegue compor um ser humano impecável, sem ser piegas ou extremamente dramático. Um pai que se sente feliz ao vivenciar coisas mínimas. Pode ser a compra de um casaco chamativo para o adolescente (o mesmo que Sami veste no reencontro com o pai no decorrer de sua fuga) ou pode ser a chance de trazer para casa o cereal preferido pelo garoto como se fora um troféu. Um pai que descansa no carro, em plena madrugada, por horas a fio, para levar de volta o filho que se diverte numa festa... 

E mais, em meio à dor da perda, ainda resta a Riadh coragem de retomar o trabalho como forma de redenção e realização – curiosamente, o único momento em que consegue esboçar um sorriso contido ao lado dos companheiros de jornada. É como se mostrasse ser preciso continuar mesmo ante perdas devastadoras. É preciso encontrar forças para lutar pelo que restou. Não basta chorar o passado. É preciso enfrentar o presente, em busca da felicidade. Efêmera (ou não), ela sempre vale a pena. 

Na realidade, os 104 minutos de projeção expõem a falha mais visível da produção – certa morosidade em momentos pontuais, diante de escolhas visuais (edição de Nadia Ben Rachid), às vezes, equivocadas, conjugadas com uma fotografia, sob o comando de Frédéric Noirhomme, que se impõe muito mais como elemento meramente funcional do que como item estético capaz de enriquecer o roteiro. Porém, nada reduz o valor do “Meu querido filho.” Afinal, este não explora o horror do radicalismo islâmico. Seu foco está nas consequências que traz às famílias, ou seja, não analisa a expansão do terrorismo em suas motivações escusas ou em seu senso de organização maléfica, mas, sim, no mal irreparável que inflige à humanidade. Isto é, Weldi é, em si mesmo, profunda reflexão em torno da sociedade contemporânea, sobre a qual paira, sistematicamente, a sombra do terrorismo galopante e cruel. 

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