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Jornalismo televisivo: grito de socorro

Maria das Graças Targino - Jornalista e pós-doutora em jornalismo pela Universidad de Salamanca / Instituto de Iberoamérica

15/04/2020 14:10

Desde o início da adolescência, sempre vislumbramos o jornalismo em sua função social que incorpora a coleta e a checagem de informações para a veiculação de notícias de interesse social. O empenho precoce advém da influência de um jornalista com alma e coração de jornalista. Autodidata, sem diploma nas mãos e ética em todas as ações, meu pai nos deixou esse legado. Por isso, talvez, nossa indignação diante de tantas loucuras que vêm ocorrendo no âmbito jornalístico de nosso Brasil, incluindo suportes impressos, radiofônicos, digitais e eletrônicos, com ênfase para a tevê, que pela força da imagem e da imaginação constrói uma utopia comunicacional e atrai audiência significativa.

Dentre as modalidades da profissão, reconhecimento ao jornalismo policial voltado à divulgação de fatos criminais, judiciais, de segurança pública e similares. O jornalismo investigativo, por sua vez, alude à reportagem especializada em desvendar mistérios e fatos ocultos do grande público, sobretudo, crimes e casos de corrupção. Vez por  outra, está ele na telinha dos cinemas, a exemplo de produções hollywoodianas, como “Todos os homens do presidente”, 1976 e “Spotlight”, 2015. É tão profunda a marca deixada pelo caso Watergate que o nome se tornou sinônimo de escândalo político, além de exemplo máximo de jornalismo investigativo. Dois jovens repórteres do Washington Post, Carl Bernstein e Bob Woodward, trouxeram à tona esquema escabroso de espionagem e sabotagem, montado sob o comando do então presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, que renuncia ao poder, em 1974. Até hoje, após décadas e décadas, Watergate ou Gate é sinônimo de escândalo ou falcatrua política.

Esclarecidas as funções dos jornalismos policial e investigativo, andamos envergonhadas pela violência presente, com frequência, no jornalismo televisivo. A prática profissional do jornalista está pautada no Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, revisto pela Federação Nacional dos Jornalistas, em Vitória do Espírito Santo, ano 2007, em substituição ao vigente por mais de 20 anos, ou seja, desde 1985. A análise do Código antevê os moldes idealizados da prática jornalística da contemporaneidade, e que, de forma indireta, refletem as mutações identificadas no processo histórico do jornalismo. 

Mesmo sem detalhar, aqui e agora,  a história do jornalismo no país, reconhecemos a força da indústria cultural atual. O idealismo dos primeiros jornalistas, em geral, grandes intelectuais, à semelhança de Raquel de Queiroz, Clarice Lispector e Jorge Amado, há muito foi substituído pela ganância empresarial. Como prática que ora privilegia os fins lucrativos, o jornalismo adere à natureza comercial em detrimento de sua identidade como elemento essencial à formação cidadã. 

E muito pior do que isto: ao tempo em que o Código vigente prescreve, literalmente, em seu Art. 11 Incisos II e III que “[...] o jornalista não pode divulgar informações [...] de caráter mórbido, sensacionalista ou contrário aos valores humanos, especialmente em cobertura de crimes e acidentes; e obtidas de maneira inadequada [...], são crescentes os casos de desrespeito ao cidadão, recorrendo-se ao sensacionalismo (recusamo-nos a chamar de jornalismo sensacionalista). Imagens chocantes e de forte apelo emotivo são expostas em horários os mais diversificados – manhã, tarde e noite – em emissoras de categorias também diversificadas. 

A cada dia, a exibição do grotesco ganha espaço, incrementando o fosso já existente entre a proposta ética do Código e a postura dos profissionais. Declarações pejorativas, racistas, polêmicas e não checadas são jogadas literalmente ao ar. Interpretações tendenciosas de entrevistas são constantes. Expressões coalhadas de adjetivos e advérbios os mais repulsivos possíveis dirigidos aos delinquentes expandem-se: “todo castigo para vagabundo é pouco”; “cabra safado”; “este já está nos buracos do inferno, juntinho com  o chifrudo”; “cabeçada no meio do fio e não morreu, o cretino”;  “bandidos, direto para as covas”; “Aplausos! Menos um.”

Dentre as pérolas – estivemos propositadamente em frente a alguns desses programas – há o depoimento de um empresário ricaço que declara ao entrevistador que o coronavírus é uma mera gripezinha e completa: “não vai acontecer porr* nenhuma se o vírus entrar na favela, pelo contrário.” Esquece-se que uma síndrome chegou e se instalou à sua porta e à sua vida. 

E mais, escutei a gravação de um jornalista experiente para quem os governos, no país, em todas suas instâncias, estão equivocados. A medida mais acertada seria a construção  de um campo de concentração para abrigar os infectados do vírus. Nem tão jovem, mas ignorante o bastante para desconhecer o impacto da expressão – campo de concentração – nas pessoas minimamente instruídas...

Agora, há um apresentador com programa diário de longa duração acompanhado de uma trupe fantasiada e com instrumentos musicais. O grupo tripudia em cima dos bandidos. Dançam. Pedem aplausos para comemorar a partida dos malfeitores. Ontem, dia 9 de abril, em plena Semana Santa, carregaram um caixão nos ombros em meio a chacotas cruéis.” São fatos inarráveis! Não dá para sintetizar!

O espetáculo desse tipo de noticiário escancara a violência grotesca, fere os princípios legítimos do cidadão de se atualizar e ameaça a dignidade da pessoa humana ao espetacularizar crimes. De maneira hostil e teatralizada, as notícias ganham dimensão de ficção, embora retratem uma realidade cruel. Esse misto de realidade e ficção causa embaraços entre real e simulado, entre jornalismo e ficção. A violência é banalizada. 

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