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Jeitinho brasileiro

Maria das Graças Targino - [email protected]

19/06/2019 08:31

Salvo raríssimas exceções, tendemos a rotular populações. Lançamos mão de estereótipos. Alguns agradáveis aos ouvidos: mulher brasileira, morena e bela, sensual e lasciva; japonês, disciplinado e trabalhador; inglês, polido e pontual. Outros são ofensivos em sua essência: francês, malcheiroso; alemão, grosseiro; brasileiro, propenso a trambiques; catalão, mal-educado. Esses rótulos tendem a ser injustos. Alguns cômicos: mulher baixinha é sinônimo de frescor, porque nos pequenos frascos de perfume, está o melhor aroma; mulher altinha não sofre dificuldades para enxergar em meio à multidão a figura do exótica Lady Gaga. E outras tolices deste porte... 

Na realidade, viajar proporciona nova visão: as pessoas são o que são, independentemente de sua nacionalidade. Há pessoas boas e más, sensuais ou “sem sal”, espertas ou desonestas, limpas ou sujas, delicadas ou indelicadas, trabalhadoras ou preguiçosas, por toda a parte. Verdade que o meio cultural interfere na visão de mundo, mas sempre é possível encontrar espécimes distintos, num mesmo rincão.

Nada, porém, impede que carreguemos, nós, brasileiros, o estigma de ser esperto em excesso, burlando normas e parâmetros sociais e/ou coletivos, sempre, com o intuito de se dar bem. Verdade que a expressão – esperto – possui conotação positiva. É quando nos referimos a alguém dotado de inteligência, arguto e vigoroso. No caso, porém, o espertinho aplicado ao povo brasileiro tem a acepção de espertalhão. Esperteza em demasia corresponde ao hábito nada salutar de ocultar erros, malandragens, omissões e falhas no convívio com familiares, companheiros e amigos, recorrendo a justificativas levianas, e, portanto, aéticas. É o jeitinho decantado do brasileiro como alguém que, com frequência, recorre a atalhos, mesmo quando estes levam a caminhos cinzas ou rotos, cujos buracos ocultam subterfúgios e maledicências.

“O auto da compadecida”, peça do grande paraibano Ariano Suassuna, em 1955, que se transformou em minissérie e, também, em filme, sob a direção do pernambucano Guel Arraes, explora de forma bastante criativa os causos de Chicó (vivido por Selton Mello) e os trambiques incríveis de João Grilo (Matheus Nachtergaele), nas brenhas do Estado da Paraíba e até no além, ante Deus e o diabo. Desde o início da obra, juntos, eles reforçam a premissa de que “a esperteza é a coragem do pobre.” Com a maior cara de pau e primando pelo jeitinho brasileiro, eles atraem plateia para o filme “A paixão de Cristo.” Dizem num determinado trecho: 

“Hoje à noite, na paróquia de Taperoá, vai passá (sic) ‘A paixão de Cristo!’” (João)

“Um filme de aventura! Que mostra um cabra sozinho e disarmado (sic), enfrentando o Império Romano todinho!” (Chicó)

“Não percam! A história de um vidente que é Deus e homem ao mesmo tempo!” (João)

“Um filme de mistério! Cheio de milagres e acontecimentos do outro mundo!” (Chicó)

“A paixão de Cristo! Filme mais arretado do mundo!” (João).

Depois desta, podemos nos perguntar se o jeitinho brasileiro está impregnado nas peças publicitárias dos nordestinos “da pesada” de “O auto da compadecida.” Vemos, ainda, quão tênue é o comportamento moral, amoral e imoral, até porque os dois malandros precisavam vender o filme de uma forma bem original para garantir “o seu!” Os fins justificam os meios? Até que ponto vale a pena primar pela verdade? Até que ponto a verdade pode ser convincente ou conveniente? Restam dúvidas e, por falta de opção, sobrevive o jeitinho brasileiro! Afinal, ao longo da história mal contada do país, tornamo-nos especialistas em afrontar e enfrentar adversidades com sorriso torto nos lábios e jeitinho malandro que cabe em qualquer lugar, até na compilação de capas de livros de autores com o pretexto de que se trata de traço característico (e limitado) de um capista e não o caráter duvidoso de ambos – capista e autor-compilador!   


Maria das Graças TARGINO é jornalista e pós-doutora em jornalismo pela Universidad de Salamanca / Instituto de Iberoamérica.

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