Portal O Dia - Notícias do Piauí, Teresina, Brasil e mundo

WhatsApp Facebook Twitter Telegram Messenger LinkedIn E-mail Gmail

Feliz Natal, menino pobre

Maria das Graças TARGINO é jornalista e pós-doutora em jornalismo pela Universidad de Salamanca / Instituto de Iberoamérica

19/12/2018 07:24

Cerro os olhos e o vejo. Cabelos louros, longos e esvoaçantes à brisa da manhã. Vi seus cabelos num dia molhado de chuva e choroso de amor. Vi seus cabelos num dia de calor seco de brisa e sedento de amor. Talvez esses cabelos tão lindos, tocando os ombros, façam com que nós, os adultos, eternos classificadores e catalogadores dos seres humanos, das ações humanas, dos erros humanos, das aparências humanas, o classifiquemos de imediato – hippie, malandro ou qualquer coisa assim. Mas você não o é.

Hippies são os meninos ricos, os meninos classe-média cansados. Sim, cansados. Cansados da solidão de seus “lares”, enfastiados ante a falta de objetivos, enojados pela hipocrisia social dominante, desnorteados diante da possibilidade de “ser um ser integral.” E é este cansaço imenso, sufocante, pesado que nem chumbo, que os leva a outros caminhos. Caminhos estes, que mais tarde, às vezes, tarde demais, já não lhes bastam, pois na verdade, não sufocaram nunca sua angústia, não lhes deram amor, ternura, carinho, não lhes fizeram nunca menos sós.

Não, rapazola louro. Você não é hippie. Os meninos pobres nunca o são. Hippies e pobres arrastam chinelas, cultivam roupas surradas, carregam sacolas, ostentam colares multicoloridos. Mas o hippie, quase sempre, está impregnado daquele ar de quem pôde optar, aquele ar de quem conheceu mesas fartas, bebidas caras, escolas particulares. O pobre carrega dentro do olhar o ar de pobre.

Vejo você. De relance. E eis sua muleta. Ela expõe sua mutilação. Ela está lá. Tenta suprir a falta que a perna lhe faz. Denuncia sua dor. Denuncia sua luta. Denuncia, sobretudo, sua vontade de viver. Os jornais estão seguros em suas mãos magras e já calejadas. E você não os carrega apenas. É um abraço. É uma carícia. Você os protege tal qual uma mãe que soube ter coração de mãe. Eles são sua arma. Através deles, você se sente gente, você se sente útil, você se sente vivo. Eles são sua vida. E quem sabe, sua paz.

O sinal fechou. Paro o carro. Recebo o jornal de suas mãos. Meu gesto não é caridade. Mas amor. Meu gesto nem é filantropia nem tampouco assistencialismo natalino. Mas agradecimento. Sim, agradecimento. Eu preciso de você. Sinto imensa gratidão por você. É você, que nessa hora amarga, segura minha barra, me joga na cara uma lição de vida: coragem! É você que me fala silenciosamente de minha covardia.

Ah! Menino louro, gostaria de conhecê-lo. Conhecer seu mundo mais profundamente. Conhecer quem conhece como vencer a vontade de não viver. Você não transmite paz. Você é a própria paz. Paz que escorrega de seus olhos castanhos, paz que rodeia seu corpo cansado. Tanta paz você envia, que ela chega até meu corpo cansado.

Por tudo isto é que lhe agradeço. Assim de longe. Anonimamente. Não importa que jamais você leia o que escrevi para você nessa noite. Noite linda! A lua domina a noite. Seu reflexo sobre as ondas sugere às águas do mar um canto de amor. Os coqueiros também cantam. E eu dedico a você, toda a beleza dessa noite e desse canto, menino pobre! Feliz Natal, meu jornaleiro único sem ser só! 

Mais sobre: