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Espelho d"™alma

Maria das Graças TARGINO é jornalista e pós-doutora em jornalismo pela Universidad de Salamanca / Instituto de Iberoamérica

28/03/2019 11:34

Sobre a matemática da vida: feliz daquele que mantém por perto os que somam e longe os que diminuem.

Tati Zanell, 2017

Anos a fio que nos víamos. Anos a fio que não mais nos olhávamos e, pior, nem sequer percebíamos que não mais nos olhávamos. Por temor, ao longo desses 14 anos de separação, estivemos muitas e muitas vezes juntos e, ao mesmo tempo, separados por um muro insondável que não permitia nos tocar nem de leve nem nos olhar: olho no olho em gesto de contemplação e envolvimento d’alma. Medo de nossa sombra. Sempre preferi nem analisar nem pensar. Nada de “papo cabeça.” Discutir a relação ficara para trás há muito tempo. Naquele dia, não sei bem o porquê, olhei dentro de seus olhos como outrora – outrora, palavra que cheira a mofo, mas que cabe aqui e agora. Olhei seu rosto devastado. Cansado. Cravado por rugas. Vi meu rosto no espelho de seu rosto. Vi meu rosto destruído em seu rosto. Eu estava ali em você. Você não era você. Você era eu. Eu era você. Você tomou a forma do espelho do quarto que compartilhamos juntos por tanto tempo. 

As rugas que vi em seu rosto, de repente, eram minhas. Cicatrizes de tempos vividos e desvividos por mim e por você. Marcas de esperanças e desesperanças minhas e suas. Saudades de nossas infâncias e adolescências em separado, compartilhadas em conversas trilhadas de risos atados e desatados e de devaneios floridos e desfloridos de ilusões e desilusões. 

Encontramo-nos no pôr do Sol de nossas vidas.  Mesmo assim, acreditamos que havia muito tempo antes do crepúsculo jogar seu véu obscuro sobre nossos sonhos e marcar nossos rostos com tanta força. Ledo engano. Após 19 anos de convivência, o Sol nascente se foi para nunca mais voltar. Avançou para muito longe. Assim foi. Roubou o brilho de nosso olhar. Levou nossas esperanças. Deixou no lugar de amantes e amados, fantasmas de quem ou do que fomos um dia. Espectros. Figuras imateriais ou imaginárias. Sombras ou fantasmas esquálidos. Velhos que sorriem para não chorar. Cantam para não dormir. 

Como agradeço e abençoo aquele dia quando voltei a olhar dentro de seus olhos e me redescobri. Reencontrei a mim mesma. Verdade que vi o que não queria ver. Mas agora sei o que sou. Sei como estou. Sei que estou refletida em suas cicatrizes, nas marcas de seu rosto, no escárnio de seu eterno sorriso zombeteiro que sempre escondeu seus tormentos mais profundos e suas dores mais invisíveis. Obrigada, espelho meu! Espelho partido, torcido, remendado aqui e ali, mas ainda meu! Espelho de prazer e desprazer! De amor e desamor! De ventura e desventura! De encanto e desencanto! De sossego e desassossego! De temor e destemor!


1. Texto do livro no prelo “Sobre amar, viver, escrever.”

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