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Cristo Negro: do Panamá para a Estácio de Sá

Maria das Graças Targino - [email protected]

17/05/2019 13:27

Todos nós guardamos conosco singularidades que não se explicam. Simplesmente são nossas. Por exemplo, sempre confessei meu encantamento perante artistas de rua, a exemplo dos que trazem música à vida dos que passam velozes e preocupados, às vezes, por meio de

instrumentos musicais variados; às vezes, com sua voz, treinada ou não. Há as estátuas vivas que se postam horas a fio nas calçadas das grandes cidades turísticas. Há os malabaristas que se

esforçam em distrair transeuntes e motoristas, quiçá, sonhando com o apogeu dos grandes circos. Nada importa. Eles estão por aí, clamando por um pouco de atenção ou por oportunidade!

Todo este preâmbulo apenas para lhes falar de meu fascínio por lendas populares, brasileiras ou não, muitas das quais trazem subjacentes crenças, fé e devoção. No caso específico, o foco é o Cristo Negro, cujo aparecimento ocorreu entre os anos de 1800 e 1830

d.C., momento histórico em que o Caribe registrou vertiginoso sincretismo religioso. Na atualidade, o Cristo Negro é cultuado, sobretudo, na Guatemala, nas Filipinas e no Panamá, guardando em cada nação suas especificidades. Na Guatemala, está cercado por mulheres

brancas e há certa fusão entre religião católica e vodu, culto que conjuga elementos de possessão e magia. Nas Filipinas, a Procissão do “Nazareno Negro” constitui uma das celebrações

religiosas mais populares.

São muitas as denominações a ELE atribuídas, como “Nazareno”, “Naza”, “O Negro”, “O Negrito”, “O Cristo” e “O Santo.” No caso específico, visitamos o Cristo Negro exposto na

Igreja São Felipe, em Portobelo, pequena cidade portuária (244,7 km²) panamenha da província de Cólon, distante 96,5 km da Capital, numa hora e meia de percurso em carro próprio. A estátua

de madeira boiava às margens do porto nas águas do oceano Atlântico, de forma imprecisa, em torno de 1658. Sua origem é cercada de histórias e de mistérios. Nada nem ninguém sabe como

ali chegou. Chovem especulações e ditos e não ditos. Indo adiante, dizem que o Cristo – óbvio que não importa sua cor (se branco ou amarelo ou marrom) – foi levado muitas e muitas vezes a

outras províncias. Surpreendentemente, quando menos se esperava, lá estava ELE de volta: no mesmo altar, na mesma posição. Para os mais crédulos, ostentava no rosto um doce e maroto

sorriso. Eis o momento em que a lenda de “O Negro” assemelha-se às manifestações em torno de Nossa Senhora do Amparo, em Teresina – PI, tema da próxima coluna!

Diante da insistência de “Naza”, a Paróquia de Portobelo decidiu atendê-lo. A Igreja simples, mas aconchegante, foi construída em 1814 e sua torre, concluída em 1945. Pouco a

pouco, os fiéis foram chegando e se avolumando. Nos dias de hoje, adornado com um manto, a cada 21 de outubro, lá vai ELE em Procissão. O manto sagrado é mudado tão somente duas

vezes por ano: durante a Semana Santa (cor roxa); durante o Festival do Cristo Negro (cor de vinho tinto). É usado uma única vez e é sempre doação de anônimos, o que resulta em alguns

bastante simples e outros luxuosos em demasia.

A efígie, representando Cristo carregando uma pesada cruz, permanece num pódio à esquerda do altar principal, mas é transportada para o centro da Igreja, quando do Festival, que

figura como o maior evento de Portobelo. Reúne cerca de 60.000 peregrinos vindos não só do Panamá, mas de outros recantos distantes, como do continente europeu, dos Estados Unidos e de

outras nações latino-americanas. De fato, a particularidade do Festival do Cristo Negro é que, de acordo com a fala dos nativos, em sua maioria, os devotos são ex-presidiários, entre assaltantes,

ladrões e traficantes de drogas. Juram ter se livrado das terríveis grades das fétidas cadeias, graças à intervenção do bondoso Cristo. Seguem de joelhos pelas ruelas de pedregulhos. Com

certa frequência, além do sangue que jorra dos joelhos, são açoitados por familiares ou amigos para que não voltem a infringir as leis... Há quem siga rastejando com mãos e joelhos...

Isto justifica o apodo do Cristo Negro, no Panamá, como “O Padroeiro dos Criminosos.” E ELE prossegue com seus caprichos: deve ser devolvido à Igreja exatamente à meia-noite. Nem

antes. Nem depois. Torna-se extremamente pesado para ser carregado! E mais! Poucos sabem que uma das principais escolas de samba de nosso Rio de Janeiro, Estácio de Sá, agora, carnaval

2019, homenageou o Cristo Negro de Portobelo com o enredo “A fé que emerge das águas!”

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