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Viva a música!, de Andrés Caicedo

Uma viagem alucinante e melódica por Cali

13/08/2015 10:20

“Viva a música!” (1977) foi publicado em 2014 pela Rádio Londres Editores. A obra tem tido excelente recepção pelos leitores e críticos que reconhecem a importância desta narrativa para a história da literatura sul-americana, bem como a figura lendária de Andrés Caicedo, que cometeu suicídio aos 25 anos, logo após receber a cópia do único romance que publicara – também era autor de contos, ensaísta, articulista e dramaturgo.

“Viva a música!” é um livro fundamental para os colombianos, considerado como o seu “Apanhador no Campo de Centeio”, pela negação da vida adulta e sua assombrosa resignação.

“Que você não ceda às maracutaias a fim de chegar à celebridade. Se você deixar uma obra, morra tranquilo, confiando em alguns poucos bons amigos. Nunca permita que façam de você uma pessoa adulta, um homem respeitável. Nunca deixe de ser criança [...] Nunca vire uma pessoa séria. Faça da irreflexão e da contradição a sua norma de conduta. Deixe de lado as tréguas, fixe sua residência no dano, no excesso e no tremor.”

Pois bem, a captura do contexto pode ser um facilitador para a compreensão da viagem alucinada de Maria Del Carmen pelas noites selvagens e pelos sons vibrantes de Cali – a época em que o romance foi escrito, a década de 1970 e suas libertações, suas possibilidades e suas inconstâncias, o deslocamento de estruturas sociais que possibilitaram aos jovens postergar e escolher por quais trilhas seguir diante da vida adulta que se apresentava.

“É, foi um fato muito comentado. A partir daí, os colunistas mais respeitados começaram a diagnosticar um mal estar na nossa geração, aquela que começou por volta do quarto LP do Beatles, não a dos nadaistas, nem a dos mocinhos burgueses atrofiados nos escombros do nadaismo. Falo daquela geração que se definiu nas festas e no mar, em cada orgia de semana santa na praia de La Bocana. Não fomos inovadores: ninguém está aqui querendo créditos pelo mérito de ter usado a primeira camisa florida ou de ter sido o primeiro cabeludo. Tudo já estava inovado quando surgimos. Não foi difícil, portanto, descobrir que a nossa missão consistia em não retroceder pelo caminho trilhado, jamais fugir de um desafio, e fazer com que nossa atividade, como a das formigas, conseguisse minar cada um dos alicerces dessa sociedade, até aquele recém-escavado por quem fala em construir uma nova sociedade sobre as ruínas que deixamos.”

De boa estudante e leitora de Marx, Maria Del Carmen, a garotinha fissurada por letras do rock’n roll americano, abandona a pretensa carreira universitária e passa a desbravar as geografias do prazer em Cali –amantes, salsa e drogas. As praças e as ruas pelas quais transita ainda apelam à sua memória afetiva, pois, recém-saída da adolescência, ainda iria moldar um novo painel de experiências.

“Sei que sou pioneira e exploradora única e que algum dia, para meu pesar, vou lançar a teoria de que o livro mente, o cinema esgota; queimem ambos, deixem apenas a música.”

Trocara a piscina pelos rios, o rock’n roll pela salsa, o dia pela noite, os planos entediantes da vida adulta pelo ritmo desvairado de festas em que ninguém curte mais que ela, nem ninguém é mais amada que ela – Maria, que nunca diz não para nada, que dança sozinha e furiosa; ou junto de Ricardito, o miserável, triste e depressivo, uma das tantas personagens que ficam pelo meio das páginas, declinando pela loucura, pelo suicídio ou pelo tédio. A moça vê transitar dezenas de pessoas por sua viagem alucinante, e sabe que são figuras passageiras e que iria aos poucos perder amigos que seriam oprimidos pelos sintomas da sua geração.

“ah não venha me dizer isso e aquilo! Eu fico calada, não falo mais nada. Estamos todos no mesmo barco, tivemos todos as mesmas oportunidades, o que é que a gente pode fazer se nos coube viver essa época em que somos eternos seduzidos e depois abandonados, as moscas não vem mais atrás de nós porque já inventaram um incenso com aroma de cereja e milhares de perfumes para a festa”

Maria e esse mar de gente tinham um compromisso da noite viva, eram uma onda intensa e inspiradora, que via a existência sob a alucinação melódica dos sons. Todos são uma enorme licença poética diante da vida – as festas e a euforia produziam entusiasmo, mas, ao mesmo tempo, diluíam a concentração ou a sensatez para fazer escolhas. Mas era esse o espírito: uma geração que não estava em busca de grandes verdades, que não queria a profundidade dos grandes pensamentos intelectuais, mas viver o espírito impetuoso que era a força vital para a juventude, que não aceitaria sucumbir à decadência da vida adulta.

A leitura de “Viva a música!” não pode ser considerada das mais simples, a começar pela rebeldia estética: ações e pensamentos, questionário médico e letras de músicas– os trechos das canções são a personalidade do livro e emergem abrupta e liricamente em meio às páginas– estão embaralhados na voz da narradora, sem nenhuma organização prévia ou posterior, impactando a percepção do leitor sobre as subidas e os declínios psicológicos de Maria Del Carmen, misturando os fragmentos de sensações, de fantasias e de recortes da memória. Uma poética subversão dos valores tradicionais, sintoma da pós-modernidade: desconfiança dos discursos totalizantes e a ruptura dos valores universais, provocando profundas repercussões nas manifestações culturais, ressaltando a quebra dos parâmetros tradicionais.

“Viva a música!” é a anarquia da existência como destino incontornável, é o canto da sereia da juventude, o deslumbramento do espírito, um incêndio no silêncio dos conformados. E esta resenha é apenas uma tentativa anêmica de exaltar a agressão desta obra àqueles que se mantêm desatentos.

“Atravesse verticalmente todas as possibilidades da precocidade. Você logo irá pagar o preço: aos 19 anos não terá no olhar nada além de cansaço, depois de ter esgotado a capacidade de emoção e ter diminuído a disposição de trabalhar. Então será bem-vinda a morte, doce morte, fixada de antemão. Antecipe a morte, marque um encontro com ela. Ninguém quer saber de crianças envelhecidas. Só você compreende que misturou os anos de desperdício com os anos da reflexão, numa só atividade intensa e distorcida. Viveu ao mesmo tempo o avanço e o retrocesso.”


Por: Luciana Lís

Revisão: Ceiça Souza

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