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Verão no Aquário, de Lygia Fagundes Telles

Publicado em 1963, este é o segundo romance da autora paulista, premiado com o Jabuti

24/06/2015 10:36

Livros são capazes de depor sobre seu tempo e Verão no aquário (1963), de Lygia Fagundes Telles (foto abaixo) é um desses. Da turbulenta e insegura década de 1960, época de fomento de novos paradigmas socioculturais e políticos, temos neste romance a decadência dos valores da família tradicional, a incerteza dos tempos vindouros e o desejo de transcendência de uma mulher insegura que emerge para a vida adulta.

A vida no aquário

Raíza, a protagonista que detém a voz deste romance, está consciente na espiral de dias em que elabora planos abstratos fadados à frustração – quer seja aproximar-se de Deus ou voltar a tocar piano. Sua personalidade volúvel confronta diretamente com a da mãe, Patrícia, uma prolífica e resoluta escritora, disciplinada, mas que aos olhos da filha parece alheia ao seu lar - exatamente por isso a figura de André chama a atenção de Raíza: o rapaz é um ex-seminarista e mantém relação indefinida com Patrícia, o que já é bastante para inquietar Raíza: quem é este homem que furta a atenção de sua mãe? Raíza apaixona-se por André, comiserada pela rejeição, pela rivalidade e pela posse.

Revolvi papéis e livros da minha mesa. Abri gavetas. Por onde andariam meus retratos? Era preciso mostrá-los a André, ele precisava me ver menina, nem o inimigo resiste ao retrato da infância. Ele tinha que me conhecer com aquela perplexidade, com aquela inconsistência diante do futuro escondido dentro de uma máquina fotográfica. Vi um retrato assim do meu pai: um menino débil e louro na sua roupa de marinheiro, a mão direita pousada na mesinha com uma toalha de franja e um vaso de flores em cima, a mão esquerda na cintura, os dedos graciosamente imobilizados pelo fotógrafo, “vamos naquela direção!...”. O olhar ainda limpo do rancor pela bem-amada que havia de traí-lo um dia, pela mãe falhando no momento em que não podia falhar, pelo amigo que não era amigo, por Deus que não apareceria para salvá-lo quando ele próprio se erguesse para ferir o próximo assim como foi ferido também. Os ídolos ainda estavam inteiros. O menino então sorri e nem o inimigo mais feroz resistirá a esse sorriso de quem se oferece tão sem defesa”.

Na solidão de seu quarto, o intenso calor acompanha a crescente angústia - em meios aos seus devaneios e à realidade que a está à espera, decide estabelecer metas e desanuviar o que lhe parece obscuro - ela tenta alcançar André, cerca-o, provoca-o, e quanto mais perto está do rapaz, vai se dando conta de que aquela proximidade irá atormentá-los tragicamente. Mas até chegar à madrugada que mudará a sua vida, terá de confrontar-se com um turbilhão de experiências que a marcam indelevelmente – enfrentar as ressacas de bebida e drogas, sentir o abandono de um relacionamento amoroso fracassado, as lembranças do pai morto, o relacionamento conturbado que mantém com sua mãe e as dúvidas que cercam seu amadurecimento.

Visto de modo amplo, Verão no Aquário nos delineia a maturação desta jovem e da sociedade ao seu redor - tempos incertos, os eufóricos anos de 1960 refletiam-se na inconsistência da vida do homem, mergulhado m seus anseios e em suas responsabilidades. Raíza fora em busca de liberdade, ainda que tivesse de enfrentar autoindulgências, agonias e tensões; assumiu os riscos que acompanham a justificativa de uma existência independente.

Lygia Fagundes Telles demonstra as agonias e os dilemas do universo feminino, numa época em a mulher passava a estar cada vez mais distante da imanência da igreja ou da anuência de uma figura masculina para estabelecer sua própria identidade. Pelos monólogos interiores e pelo calor dos ambientes abafados, adentramos no íntimo de uma jovem insegura sobre sua própria existência, que tenta executar planos sem convicção de si, no emaranhado sentimental e turbulento de sua juventude; mas, quando forçada a uma experiência-limite, se liberta do aquário e está pronta para enfrentar o mar.

“Seus passos ressoaram frios na poeira da laje e se perderam novamente. Em algum vão da igreja alguém tossiu. Abri o lenço para que secasse ao calor das velas. Apoiei as costas na parede. E de repente tudo aquilo me pareceu já ter acontecido há muito tempo: era como se em outra tarde igual eu tivesse estado naquele mesmo lugar, fazendo os mesmos gestos e à espera do mesmo milagre enquanto secava nos joelhos o lenço molhado de lágrimas. Tudo estava disposto como já estivera antes. O acontecido ia-se repetir, por experiência eu sabia que nada podia ser mudado e embora me doesse a certeza do inevitável, cheguei a sentir um certo alívio porque esse desespero era meu conhecido e por conhecê-lo, podia agora suportá-lo”





Por: Luciana Lis

Revisão: Ceiça Souza

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