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Os pescadores, de Chigozie Obioma

Livro de estreia alcança excelente crítica da imprensa especializada

17/03/2016 09:41

Os pescadores de Chigoze Obioma se passa na Nigéria dos anos 1990 – especialmente entre 1993 e 1996, na cidade de Akure. Quatro irmãos descobrem a pescaria e decidem passar o tempo livre às margens do rio Omi-Ala. Embora sejam de classe média e não necessitem disso para viver, as idas ao rio são mais por diversão e fascínio. Peixes, girinos e outros habitantes daquele pequeno universo terminam fascinando os irmãos.

A problemática inicial é: parte dos nigerianos, católicos, acreditam que o rio é amaldiçoado e que não é o lugar mais seguro, no qual crianças possam brincar. Quando os colonizadores chegaram da Europa e trouxeram consigo o cristianismo o rio deixou de ser um local sagrado, habitado por divindades e se tornou, como o próprio autor diz, um berço emporcalhado. No qual se faziam rituais de magia às margens. E teve a reputação piorada quando a seita conhecida como Igreja Celestial estabeleceu ali sua sede.

Um dos irmãos é Benjamin, está dentre os mais novos, ele é nosso companheiro e narrador. Conosco ele divide a história de sua infância. Já no início ele confidencia que aquelas idas ao rio mudariam para sempre o curso da vida de sua família. Outro fator que também é citado como fundamental é o afastamento do pai. Dim é funcionário do Banco Central da Nigéria e é transferido para a cidade de Yola. A partir do momento que ele é obrigado a se distanciar da família, as coisas começam a sair dos trilhos ou do que até então, estava planejado. Como bem nos diz Benjamin, o pai era uma águia e sabia de tudo. Conduzia a casa com mãos de ferro, contudo jamais deixara de ser um pai amoroso e comprometido com os filhos.

Na última ida ao rio, Ikenna, o primogênito é amaldiçoado pelo louco da cidade, tido também como profeta e funesto. Segundo o insano, Ikenna será assassinado por um pescador. A partir desse acontecimento todos passam a ser atormentados pela profecia. Como diz Benjamin, Ikenna é envenenado pelas palavras cruéis de Abulu.

Basicamente, esse é o enredo mor. No entanto, a obra jamais poderia ser fechada aqui. Por inúmeros fatores, a prosa se derrama e flui intensamente como um rio. E esse rio, assim como o próprio Omi-Ala, contém aspectos sagrados e profanos. Ao mesmo tempo em que contemplei a beleza da relação fraternal, dei de cara com o lado visceral e muitas vezes incontrolável da ira. Aquilo que mais acreditamos é justamente o que tem mais chance nos dar cabo.

Até mesmo as línguas estão misturadas e entremeadas – nossos personagens oscilam entre o inglês (idioma imposto) e o iorubá para poder montar sua realidade, para estabelecer uma comunicação necessária, mas sempre insuficiente. Já que ambas são equívocadas e incapazes de dizer tudo que há naquele lugar que ainda é deles, mas que já não é o mesmo de seus antepassados. Ao ler nos sentimos atados a todos eles, oscilamos entre os ensinamentos cristãos (igrejas, pastores e bíblias) e as forças anímicas inerentes a cultura mãe. Constatamos o etnocentrismo no pai que deseja oferecer aos filhos a verdadeira educação ocidental.

Posso dizer que para mim, essa leitura trouxe percursos inimagináveis. Nunca passeei pela Nigéria e pouco ou quase nada sabia sobre o país. Após ler referências sobre as eleições presidenciais de 1993 e sobre o grande líder conhecido por M.K.O Abiola, numerosamente citado no livro, não me contive e fui estudar um pouco sobre o país. Procurei documentários, fotografias e notícias. Relembrei de um cara chamado Fela Kuti, que certa vez alguém citou para mim. Redescobri a potência artística e política que ele exerceu pela África enquanto vivo. Descobri que a Nigéria é um dos países mais populosos do mundo, relembrei a Guerra de Biafra ou Guerra Civil da Nigéria. E mais uma vez me apaixonei pela falta de literalidade dos africanos, que usam metáforas, parábolas – tornando o mundo mais mágico e fora das linhas que já estão traçadas no nosso inconsciente coletivo, mas que podem ser rabiscadas, apagadas ou desviadas.

Algumas vezes a leitura pesou toneladas sobre minhas costas. Assim como só as tragédias são capazes de fazer. Falta o chão, o ar e estamos soltos num universo onde o mais pavoroso pode acontecer. O drama biblíco de Caim e Abel é revivido num cenário e narrativa tão diferentes que a história me parece totalmente nova, como se nunca tivesse sido contada e recontada anteriormente. Portanto amigos esse é um livro para os leitores que não têm medo de desbravar suas emoções mais profundas. Para aqueles que sabem o que é ter no âmago uma comichão que nos devora lentamente. A conclusão óbvia que cheguei é que somente as tragédias podem trazer consigo tanta poesia, tanta dilatação do real, do tangível.

Benjamin, o querido Ben, apaixonado por animais trata de sempre fazer comparações entre as pessoas e os bichos. Trazendo para perto de nós um pouco da África, um pouco do olhar da criança e um tanto de beleza. A minha outra certeza ainda mais pífia é que a Literatura dói até os ossos.



Redação: Ananda Sampaio - @coletivoleituras

Revisão: Ceiça Souza

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