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Meio Sol Amarelo, Chimamanda Ngozi Adichie

Romance aborda fatos históricos sobre a guerra e independência da Nigéria

25/11/2015 08:56

O carinho imenso que tenho por esse livro tem muitos motivos. Um dos temas, irmandade, sempre me foi caro, porque tenho a sorte de ter muitas irmãs, de sangue ou de escolha. Romances históricos bem escritos sobre fatos não tão conhecidos também aguçam minha curiosidade.

*Por ser a resenha de um livro que trata de fatos históricos, mesmo que de modo ficcional, eventualmente este texto pode conter spoilers

A trama do livro trata da criação e guerra por independência da República de Biafra, ocorrida na Nigéria entre 1967 e 1970. A secessão foi liderada pela etnia Igbo, ocupando territórios a sudeste do país e elegendo a cidade de Enugu como capital. Lendo esta e outras obras da autora, percebe-se que o equilíbrio entre as variadas etnias que vivem na Nigéria é muito delicada. As maioritárias são Igbo (católicos), Yorubá, Haussa (islâmicos em maioria) e Fulani. Ao final d livro a autora deixa claro que mesmo a opção de escrita do nome dessas etnias é um ato de resistência cultural: ao não escrever “ibo” como fazem os ingleses, Chimamanda ajuda a preservar sua linguagem e sua cultura.

A principal causa do conflito relatado no livro foi a existência de petróleo em abundância na região sudeste da Nigéria, o que fez com que o governo nigeriano lutasse com todas as forças contra a separação deste território. Lembre-se que nos anos 60 algumas das guerras (no Oriente Médio e África mediterrânea, como a Guerra dos Seis Dias entre países árabes) que ocasionaram crises de preços de petróleo já haviam ocorrido, e nesta época, ser possuidor ou aliado de um país com território rico neste recurso tinha grande importância estratégica e econômica. Em razão disso, muitos países poderosos ajudaram a Nigéria a derrotar Biafra em troca de lotes de exploração petrolífera ou preço mais barato nos barris.

A história principal é de Olanna, cujo nome significa “meu ouro” e sua irmã gêmea Kainene, não tão graciosa quanto Olanna, porém astuta e sucessora do pai, um “grande homem” da Nigéria, nos negócios da família. Elas se chamam por “minha gêmea”, e na relação das irmãs com o tempo, algo perdeu-se nas curvas do crescimento. O título do livro é uma construção impecável: as metades do sol são as irmãs, e o sol nunca poderá ser completo se elas não estiverem juntas. Mas repito: a relação das duas não é fácil ou isenta de rancores. Tem silêncios pesados e acusações feitas com olhares, tem irresoluções como toda relação familiar. Kainene é enciumada da beleza e graça de Olanna, uma vez que esta não aprova muitos dos métodos e traços de caráter da irmã. E um acontecimento desastrado causado por impulsividade torna tudo ainda mais difícil na relação das duas.

Olanna tem um namorado que leciona na universidade. Logo no início do livro, vai morar com Odenigbo sem casar-se, em regim de companheirismo (algobem avançado para a época), e há uma atmosfera de felicidade, interrompida por alguns contratempos domésticos e a presença da sogra de Olanna, uma mulher tradicional da aldeia de Abba que não aprova a união do filho com uma mulher instruída. Por isso, a mãe de Odenigbo força um acontecimento que ao final, após toda dor e mágoa que causa, ao contrário dos planos dela, aumenta a união e amor entre o casal que ela tanto quis separado. Algumas das passagens mais belas do livro estão relacionadas a isto:

“'Você nunca deve se comportar como se sua vida pertencesse a um homem. Ouviu bem?', disse tia Ifeka. 'A sua vida pertence a você e só a você, soso gi.'”

“Não veja isso como um perdão. Veja como permissão para ser feliz. O que vai fazer com a tristeza que escolheu? Vai comer tristeza?”

Um parêntese: a segunda citação veio até mim quando eu realmente esteva presa por uma tristeza que pesava e me impedia de ser feliz. Não era a tristeza por ser traída de modo carnal como Olanna fora por Odenigbo, era uma faca que cortava meu coração cada vez que meu sangue se oxigenava, de novo e de novo. Uma grande tristeza de monção apoderou-se de mim então e já fazia quase um ano e ao ler esta frase, assim, nestes segundos, me libertei. Perdoar é mais sobre si mesmo que sobre o outro e a clemência verdadeira é silenciosa. O corvo que vivia espreitando o brilho da minha alegria para comê-la bateu suas asas e saiu de mim. Esta foi mais uma das provas de que um livro também pode instruir a alma.

Então, após as articulações políticas e o movimento pela independência, começa a Guerra Civil da Nigéria, e com ela todos os horrores da fome e dos ataques aéreos direcionados a civis. Um dos personagens, Richard, um professor inglês que mantém um relacionamento com Kainene, inicia então a escrita de crônicas e reportagens sobre a guerra de Biafra. A figura deste professor dá forma ao ranço colonialista inglês, que é um pouco desastroso mesmo quando tenta ser benevolente e generoso. Em uma das frases da crônica de Richard, vemos que muito pouco mudou a respeito de como se trata de tragédias ao redor do mundo:

“Iria escrever sobre isso, sobre a regra do jornalismo ocidental: cem negros mortos equivalem a um branco morto.”

Com o mundo mergulhado na crise de refugiados do Estado Islâmico, esta frase não poderia ser mais atual. A importância de cada alma não-branca é menor, as notícias fazem com que se sinta menos as mortes e todo o sofrimento. “O Mundo Estava calado Enquanto Nós Morremos” é o título de um livro escrito por Ugwu, inicialmente criado de Odenigbo e Olanna, mas que torna-se amigo da família. O mundo assiste calado às tragédias consideradas menores e nada faz. Mais de cem mil civis mortos de fome, por raides aéreos e execuções sumárias. Apesar de formarem uma família economicamente privilegiada, Olanna e Odenigbo, por escolherem não fugir para o exterior (como fazem os pais de Olanna) e resistirem por Biafra, vivendo em campos de refugiados, improvisando abrigos anti-bombas e enfrentando toda sorte de privações. De forma surpreendente, Kainene também o faz, usando de suas habilidades escusas de barganha para manter sua família e amigos vivos.

Ao fim do escrito, situado no final da guerra com a volta de Olanna e Odenigbo para sua casa em Nsukka inventariando os estragos e perdas, dentre eles dos amados tios de daquela, percebemos que o sol vai brilhar sempre pela metade no peito de Olanna e dos biafrenses que sonharam com a liberdade.


Chimamanda (foto acima) faz parte do que denomino de escritores oráculos, aqueles que consulto sempre que preciso de respostas quando estou muito angustiada. Junto dela, Valter Hugo Mãe, Saramago e Marguerite Duras, dentre outros. Esta autora me trouxe lindas luzes quando eu precisava de alento, e muito da importância que tem para mim vem disso. Do poder que esta mulher tem de me libertar e de me ensinar coisas mágicas.

*Há um filme de 2013, de Biyi Bandele, homônimo ao livro, baseado na obra de Chimamanda produzido na Nigéria, que tem uma das maiores indústrias cinematográficas do mundo.


Por: Lara Matos

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