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Estação Atocha: um pouco de pós-modernismo

O livro critica abertamente o americanismo pelo mundo

12/11/2015 13:40

Estação Atocha, de Ben Lerner, é extremamente autorreferencial – como disse o próprio autor, o protagonista Adam Gordon é uma versão exagerada dele mesmo quando jovem. O personagem, assim como o escritor, é poeta, norte-americano e consegue uma bolsa em uma prestigiada fundação para morar na Espanha e desenvolver um trabalho que envolve poesia e Guerra Civil Espanhola.

O livro critica abertamente o americanismo pelo mundo. Em algumas passagens, Adam Gordon, que é também narrador, descreve o sentimento de desprezo que sente pelos turistas estadunidenses – até mesmo por aqueles que tentam a todo custo enquadrar-se nos costumes espanhóis e que tentam adentrar em grupos sociais formados apenas por espanhóis.

“Manifestei meu desprezo infinito a cada turista com cujo olhar cruzei, o que podia facilmente fazer com as sobrancelhas. Meu olhar os acusava de apoiar a guerra, de tratar as pessoas e as relações interpessoais como objetos, de ser os camicases de um império assassino e prepotente, acusava-os como se eu fosse um escritor em fuga de um regime depressivo, e não um de seus bolsistas mais desonestos” (p. 59)

Como pode ser observado na passagem acima, Adam não poupa críticas. Em vários momentos, ele se autoanalisa, e com severidade e remorso reconhece seus defeitos.

Os Estados Unidos vivem a era Bush, e na Espanha em breve acontecerá o atentado terrorista ao metrô de Madri (11 de março de 2004), na estação que dá nome ao livro “Estação Atocha”.

A barreira da língua, enfrentada por Adam Gordon, frequentemente o salva. A falta de entendimento gera equívocos e potencialidades de entendimento.  Refletindo um pouco a própria relação do poeta e da poesia com o público – que parece sempre procurar sentidos e explicações sobre o fazer poético e até mesmo com a arte em geral.  Na tentativa de se chegar sempre a um denominador comum.

“Nossa relação se fundava, em grande parte, na minha incapacidade de me comunicar, uma desculpa para falar por fragmentos enigmáticos” (p. 63)

Viver num país estrangeiro pode ser bem interessante para um impostor ou farsante – analisa o nosso narrador, que, entre mentiras e atropelos, cria estórias para chamar a atenção ou supostamente para adquirir controle das suas relações.  Tudo isso acompanhado de um temeroso sentimento de culpa. Ele vai para Espanha, no entanto, pouco ou quase nada sabe sobre a cultura poética do país ou da situação política dele. Adam é interpelado algumas vezes por espanhóis que perguntam sobre esse ou aquele poeta e, pela tangente, ele sai tentando disfarçar seu desconhecimento.

Pode-se dizer que Adam é um reflexo da juventude norte-americana pós-moderna. No entanto, algumas de suas atitudes, suas impressões e seus sentimentos podem ser mais generalizados para o estilo de vida que temos hoje. Como a fluidez dos relacionamentos e até da própria identidade. E até do desleixo com que rompemos algumas relações. O uso totalmente desequilibrado de medicamentos controlados, como antidepressivos e ansiolíticos, o haxixe, a maconha e o álcool como escapes do vazio interminável.  Talvez por isso ele reflita várias vezes sobre as experiências reais e virtuais. E, sobre virtual, pode-se entender como qualquer experiência mediada, não apenas pela tecnologia, mas, inclusive, pelas substâncias psicotrópicas das quais ele faz uso, ou ainda a própria poesia, por meio da qual ele tenta vivenciar o mundo.

“Bebia e fumava de modo que tornara a identificação dos efeitos específicos dos comprimidos brancos impossível. Mas, de qualquer maneira, era o ritual de tomá-los que se tornara importante para mim, não tanto por causa de eventual efeito placebo, no sentido de que o mero fato de engoli-los me estabilizava, mas porque representavam um lembrete cotidiano de que eu era oficialmente um indivíduo perturbado, que estava seguindo um tratamento médico, que sofria de uma doença com nome específico.” (p. 121)

Muitas vezes, dar nome às nossas angústias já é um atenuante para nosso temor. Catalogar a dor e diagnosticá-la pode torná-la mais aprazível e menos delirante. Pelo menos, em parte, é isso que Gordon tenta nos comunicar. Quando o ataque à Estação Atocha acontece e toda a Espanha se vê enrodilhada num caldeirão de emoções, é que o deslocamento do protagonista se torna mais aparente. Enquanto todos parecem envolvidos em manifestações, dores coletivas e conversas políticas – Adam Gordon passeia por esse cenário sem muito esforço ou pretensão de entendê-lo. Ele lê os jornais, participa de algumas passeatas, mas se sente ridículo toda vez que tenta gritar junto com a multidão. A sua condição de deslocamento também permite um olhar diferenciado sobre os acontecimentos. Vivemos numa era tão instantânea que até quando parecemos estar envolvidos por alguma comoção social/coletiva/política não sabemos de nada ou quase nada.  Constituindo, assim, envolvimentos esporádicos.

Essa construção de leitura também se deve ao fato de que conhecemos a perspectiva espanhola por meio dos olhares e dos comentários de três amigos de Adam, que são ricos e de família tradicional.

“Perguntei se ela conhecia alguém que tinha morrido no ataque, mas respondeu que não. Disse que muitas das vítimas eram imigrantes. Que era um crime contra os trabalhadores e que ela não conhecia muitas pessoas que trabalhava. [...] Ela se lançou numa teorização incrivelmente detalhada e, pelo que pude entender, sofisticada, sobre as consequências políticas daquele atentado. Estava certa de que o ETA nada tinha a ver com aquilo. Eu não disse nada.” (p. 153)

Um anti-herói que teoriza sobre nosso tempo que pode ser classificado como mentiroso compulsivo, mas que é bem honesto. Fecho a resenha com o trecho abaixo que esclarece e ressalta uma parte interessante do livro.

“A angústia sobre Isabel e Teresa, aliada ao sentimento de culpa sobre meus pais, abriu o caminho para dúvidas mais profundas sobre minha desonestidade; que eu fosse um impostor ninguém podia duvidar – quem não era? Quem não desempenhava de maneira ilegítima um dos poucos papéis pré-fabricados postos à disposição pelo Capital, ou como quisermos chama-lo, mentindo descaradamente cada vez que dizia “EU”, quem não atuava, pelo menos como figurante, no comercial informativo, reprisado excessivamente, sobre as injustiças da vida?” (p. 122).


Por: Ananda Sampaio

Revisão: Ceiça Souza

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