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Para alguém que nasceu no sertão aprendi a ler relativamente cedo

Amante dos livros, minha relação com eles é pragmática. Uma vez lido, o livro deve cumprir a sua função: circular.

24/03/2019 06:57

O Livro

Para alguém que nasceu no sertão do Caracol, onde não havia escolas, professores, livros, aprendi a ler relativamente cedo.  Desasnado por dona Purcina, aos sete anos de idade já soletrava algumas palavras; aos oito, lia os folhetos de cordel que me chegavam às mãos. A partir de então, de forma desordenada e caótica, passei a ler tudo. Eu disse tudo? Menos: não consigo ler Proust, Joyce e Salman Rushdie. Como se pode ver, sou apenas um leitor mediano. Amante dos livros, minha relação com eles é pragmática. Uma vez lido, o livro deve cumprir a sua função: circular. Não sou bibliófilo, não coleciono obras raras. Tenho apenas um livro que me é muito caro: Poesias Completas, de Da costa e Silva. Além do valor intrínseco da obra, há uma história curiosa que justifica o meu apreço pelo livro.

 Em 1982, eu e M. Paulo Nunes editamos a Antologia Poética, de Da Costa. Foi a primeira vez que se editou o poeta no Piauí. Pouco tempo depois, o pintor Nonato Oliveira me procurou para fazer uma denúncia extremamente grave. Segundo ele, peças do Museu do Piauí estariam sendo furtadas. À época, Museu, Biblioteca e Arquivo Público funcionavam, juntos, na Casa Anísio Brito. Para confirmar a denúncia, afirmou: “Procure os quadros do Lucílio Albuquerque no Museu. Já furtaram todos”. Na companhia do poeta Paulo Machado, fui conferir. Era verdade: os quadros tinham desaparecido. O Paulo constatou que também haviam furtado alguns livros raros. Sem meias palavras, fiz a denúncia na TV Clube. O então secretário de cultura, em vez de mandar apurar a denúncia, foi à TV para desqualificar-me. O mínimo que me chamou foi de “irresponsável e inconsequente”. Devolvi no mesmo tom: irresponsável é quem tem o dever de cuidar da coisa pública e não o faz. Político matreiro, o secretário deu o calado por resposta, como diria o coronel da Chapada. Quando a poeira baixou, não se sabe como, duas das obras furtadas apareceram. Estão no Museu até hoje.

 Três anos depois, em 1985, o governador do estado resolveu comemorar, em grande estilo, o centenário de nascimento do poeta Antônio Francisco da Costa e Silva. Uma tarde, o embaixador Alberto da Costa e Silva, filho do poeta, ligou-me muito constrangido. O secretário de cultura teria feito uma exigência: em hipótese alguma, eu poderia participar da organização da efeméride. Tranquilizei o embaixador e fui cuidar da minha vida. Fez-se a festa, editou-se uma revista colorida, choveram discursos e tudo mais. Para dar maior brilho à festa, o governo do estado encomendou à Editora Nova Fronteira uma edição especial das poesias do amarantino. Foram impressos apenas 200 exemplares do livro Poesias Completas, em papel Vergé, capa dura, com letras douradas. Os livros foram numerados de 001 a 200, e assinados pelos editores. Destinavam-se aos graúdos da República.

Finda gestão do tal secretário, o jornalista Kernard Kruel me procurou. Trazia cinco exemplares da edição especial. Segundo explicou, os livros estavam jogados num porão da Secretaria de Cultura à disposição das traças e  dos cupins. Queria pôr os livros à venda na Livraria Corisco.  Assim, os livros focaram na loja em consignação. Como o preço era salgado, os cinco exemplares passaram muito tempo na prateleira. Uns três anos depois, ainda havia um exemplar, meio empoeirado. Resolvi comprá-lo. Abri o livro e tratei de conferir o número daquele exemplar. Para minha surpresa, lá estava: 001. Seguramente, o exemplar seria destinado ao presidente da República. Não consigo me lembrar do fato sem experimentar um gostinho de vingança.

Fiz a minha leitura: o velho bardo, num gesto de gratidão, decidiu prestar singela homenagem ao seu editor no Piauí.  Como diriam os mais jovens, valeu Poeta!

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