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O velho não sabia

Naquela madrugada do dia 1º de maio de 1984, seu Liberato não sabia que poderia permanecer na cama por mais tempo.

05/05/2019 06:46

Naquela madrugada do dia 1º de maio de 1984, seu Liberato não sabia que poderia permanecer na cama por mais tempo. Por volta das 5 horas da manhã, virou-se para a filha amada e declarou: “O Cineso deve estar chegando”.  E partiu sem me dar tempo de lhe pedir a bênção. Tinha 81 anos de idade, todos os dentes  e nenhuma dívida. Preso aos limites do seu roçado, para ele, primeiro de maio era um dia como outro qualquer, com direito a enxada, suor, canseira...

Liberato Francisco dos Santos era um sertanejo atípico a começar pelo nome. Nasceu e viveu no sertão do Caracol (PI), numa terrinha madrasta, sovina, inclemente. Trabalhava com a regularidade de um bom cronômetro. Parecia feito de paciência e resignação. Como nos versos do Dobal, “não lhe ardia o desespero de ser dono de nada”. Pautava sua vida pelo regime das chuvas, daí a necessidade de buscar seus sinais na floração dos mandacarus, na agitação das formigas, na barra do dia...

Seu eu tivesse de defini-lo com um único adjetivo, eu diria: exato. Um homem sem transbordamentos; um cidadão que cabia em si. Nunca o vi eufórico nem colérico. Comia pouco, trabalhava muito, dormia o necessário. Melhor seria defini-lo pelo que não fazia. Não promovia queimadas; não caçava; não pescava; não maltratava os animais domésticos; não surrava os filhos; não contava vantagens, não fazia versos; não tocava sanfona; não bebia cachaça; não suportava barulho... Sabia assinar o nome, conhecia as quatro operações, o que lhe bastava para administrar seu pequeno patrimônio. Quando estava entre os seus, contava causos, alguns muito engraçados.

Seu Liberato detestava preguiçosos. Sem o saber, pregava o preceito de São Paulo: “Se alguém não quer trabalhar,  que não coma”.  Não pedia nada emprestado; nada emprestava a ninguém. No mais, era cordial, ordeiro, decente. Em sua aldeia, era respeitado.

Ao longo da vida fez apenas quatro viagens: a primeira para Juazeiro da Bahia de onde voltou impressionado com a pujança do São Francisco e a famosa ponte levadiça. A segunda, tangido pela seca de 58, foi a Brasília ajudar Juscelino (que nunca viu) a construir o seu delírio de concreto nas asperezas do cerrado. A terceira com destino a São Paulo, buscar “refrigério para a vista cansada”. Voltou praticamente cego e acompanhado de um câncer que o mataria. A quarta e definitiva, na madrugada de 1º de maio de 1984.

Com seu Liberato, aprendi coisas simples e práticas: trabalhar diariamente; respeitar o próximo; honrar a palavra empenhadas; campear nuvens na vastidão do azul; amar as chuvas brandas; tomar café forte e fazer quase tudo para agradar as mulheres... Para mim, ensinamentos de muita valia.

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