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O gênio que não sabia sorrir

Confira a crônica de Cineas Santos publicada no caderno Metrópole, do jornal O Dia.

04/11/2019 12:47

Em 1976, Aldenora Mesquita, diretora do Departamento de Assuntos Culturais da SECULT, pediu-me que fosse à Biblioteca Des. Cronwel de Carvalho ver a exposição de “um garoto talentoso”. Fui e o que vi me surpreendeu. O tal “garoto” era, na verdade, um menino de quinze anos de idade. Negro, alto, magro, tímido. Parafraseando Bandeira, falava pouco e sorria menos ainda. Para ser mais preciso, não sorria. Quanto à exposição, um assombro. Era um punhado de desenhos em nanquim. As influências de Di Cavalcante e Portinari eram visíveis, mas o garoto demonstrava pleno domínio da técnica do bico de pena. Para demonstrar o meu entusiasmo pelo trabalho, comprei três telas, as únicas vendidas na exposição. Escrevi, entre outras obviedades, o seguinte: Fernando Costa tem apenas quinze anos de idade e muitos séculos de arte.

Com um mínimo de esforço entendi o porquê de o garoto não sorrir nunca: faltavam-lhe todos os den-tes anteriores. Fiz o que me pareceu correto: pedi a dona Áurea que lhe pusesse uma prótese. Um milagre aconteceu: Fernando da Silva Costa desandou a sorrir como uma criança que se descobre capaz de caminhar e começa a correr. Incontinenti, adotei-o como meu segundo filho do coração. Ago-ra, éramos um trio: eu, Paulo Machado e Fernando Costa. E como havia muito por fazer, não podíamos perder tempo. Estávamos sempre juntos e a mil por hora. Eu e o Paulo escrevíamos; o Fernando ilus-trava.

Tratei de matriculá-lo numa boa escola e de propiciar-lhe o material necessário para que ele pudesse se expressar artisticamente. Em curtíssimo espaço de tempo, tornou-se um pintor extraordinário. Quando realizou sua segunda exposição, pediu-me que lhe escrevesse um perfil. Entre outras coisas afirmei: Fernando é pessoa mais gentil e suave que conheci. Mesmo jogando futebol - zagueiro central - é incapaz de uma jogada violenta ou desleal. Salgado Maranhão foi um pouco além: “Fernando não caminha; levita”. Fala baixo, adora música de boa qualidade, mulher e cerveja gelada. Seu jeito de ser lembra o Paulinho da Viola. Mas muito cuidado: sua obra destoa completamente de sua personalidade. Então, convém mantê-lo distante de carvão, giz, tinta, pincel... Ao menor contato com qualquer desses elementos, desce sobre ele o espírito de todos os grandes mestres da criação e tudo pode acontecer. Sua pintura é visceral e, às vezes, assombrosamente bela.

 Como um cometa fulgurante, Fernando Costa passou rapidamente pelos céus da Chapada, deixando atrás de si um rastro de luz de beleza indescritível. O talento de Fernando não cabia nele. Assim, na madrugada do dia 2 de março de 1987, libertou-se das amarras que o prendiam ao mundo.

Em tempo: há uma exposição do Fernando em cartaz na galeria do Mercado Central. Uma boa oportunidade de conhecer um pouco do trabalho do artista.

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