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Das coisas que não se esquecem

As vezes, no finalzinho da tarde, um dos adultos espiava a barra avermelhada do poente e sentenciava: "œHoje, a cruviana corre solta!".

19/05/2019 06:37

Para os do meu tope, aquilo era como a sensação do álcool na pele antes da picada da injeção. Entendíamos tudo: faria frio de congelar tutano. Para quem não sabe, no sertão do Caracol, entre os meses de maio e setembro, faz muito frio. O frio, evidentemente, seria suportável, tivéssemos algum tipo de agasalho. Mas éramos todos muito pobres. Os remediados (eu estava entre eles) dormíamos em “tipufas” (redinhas ordinárias) feitas com tecido de saco de açúcar. Os miseráveis – a maioria – dormiam enovelados, como aquele cão do poema do Quintana, próximos de uma fogueira. Inconvenientes: além dos riscos de queimaduras, enquanto uma parte do corpo ardia a outra congelava. Ásperos tempos. Para que se tenha uma ideia da pobreza de todos, seu Abraão era quase um dignitário pelo simples fato de, num raio de algumas léguas, ser o único a possuir um par de meias e um “ataia-bufa” (cobertor de lã), trazidos de São Paulo.

 Vai que, certa noite, fez um frio de matar borregos. Eu teria quatro ou cinco anos de idade. Não bastasse a cruviana, fiz xixi na rede. Levantei-me com os galos-de-campina. A casa estava silente, mergulhada na penumbra. Dirigi-me como um autômato à casa de farinha na expectativa, talvez, da quentura do forno. Infelizmente, não era tempo de farinhada.   No meio do caminho, um lenitivo: uma pequena fogueira feita com sabugos de milho. Acocorado, com as mãos estendidas na direção do fogo, um pigmeu caboclo. Atendia pelo nome de Bertim, era um dos loucos do plantel de dona Purcina. Idade inescrutável, um metro e meio de altura, barriguinha proeminente e os olhos roídos pelo tracoma. É a primeira figura humana de que me lembro na vida. Ele, como de costume, também fizera xixi no couro de boi onde dormia. Levantou-se, pegou-me pela mão e, carinhosamente, me levou para bem próximo da fogueira: “Vamos quentar fogo, meu santo”, propôs.

Nascia ali uma amizade que não envelheceria. Bertim era meio gago, tocava um berimbau com um cordão de rede e cantava sempre a mesma toada, que se iniciava assim: Andando na rua/ avistei na janela/corpinho tão lindo/carinha tão bela. Tantas fez, que acabou tornando-se meu padrinho de fogueira... Um dia, como qualquer louco que se preze, soverteu-se no breu da noite.

Ontem, no colo de uma rede “cheirando a guardado”, com a saúde  debilitada, tive a impressão de que, de algum lugar insituável  entre o nunca e o nada, meu padrinho querido me acalentava cantando a velha modinha que terminava assim: Adeus, ingrata, /até não sei quando/pelos teus carinhos/saí suspirando...

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