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Aquarela viva onde se misturam cores, odores e sabores

(Fragmento do livro O Aldeão Lírico)

20/01/2020 11:07

Sábado era um dia bom. Era dia de feira. Muito cedo, éramos acordados com o barulho dos chocalhos dos jegues conduzidos pelos feirantes. Vinha gente de muito longe trazendo sua escassa mercadoria. Traziam tudo: feijão, farinha, milho, abóbora, melancia, mel de cupira, batata de purga, resina de angico preto...

Por volta das nove horas, a feira fervilhava. Uma aquarela viva onde se misturavam cores, odores e sabores diversos. A Roda do Bitoso era pequena para acomodar tanta gente. Com quinhentos réis podia-se comprar um bolo frito da Santa Preta, bolo temperado com suor (sem tirar a mão da goma, a vendedora metia a mão entre os seios para guardar o dinheiro ou passar o troco e voltava ao trabalho, suando muito). Logo adiante, o Leoba vendia “tiquinho”, um refresco no qual se misturavam água da Lagoa do Mato, xarope de groselha e açúcar. Certa feita, da torneirinha enferrujada saiu um girino morto. Ninguém reclamou. Bom mesmo era comer uma “besta gorda” ainda quente. Era um pão delicioso, vendido pelo Raimundo Pança, que anunciava sua mercadoria com um pregão insólito: “Olha a besta gorda, filas!”.

No meio da pequena praça, havia bancas de jogos: cartas, roleta, dados. Um crupiê gritava animado: “É o jogo de São Severino: joga homem, mulher e menino e os velhos aviciados!”. Camelôs apregoavam suas bugigangas, tentando atrair os fregueses. Alguns anos mais tarde, tornei-me um deles. Como camelô, aprendi a falar sandices sem o menor pudor: tem sempre alguém disposto a ouvir a nossa arenga...

A fauna dos feirantes era rica e variada: o Melado, com sebo de carneiro e carvão de panela, engraxava sapatos e melava a bainha das calças dos fregueses, daí o apelido. O Paizinho tocava instrumentos – cavaquinhos e violões, que ele mesmo fabricava.  Num cantinho bem perto do açougue, o velho João Fogueteiro, com seu jeito de Frei Damião, vendia bombinhas e fogos de artifício.  Um mundo em ebulição. Entre os pedintes, dois se destacavam: Marquinho, “o bode” e o Mané Ró-ró. Quando provocado, o bode era capaz de xingar até a mãe de Nosso Senhor. O Mané Ró-ró pedia cantando. Então, a molecada gritava: “olha o Mané Ró-ró!” e ele respondia, sem sair do tom: “Vá apelidar sua avó”. A feira de São Raimundo Nonato, com seus tipos curiosos, desapareceu. Hoje, o centro da cidade parece um imenso bazar onde se vende tudo, principalmente bugigangas chinesas. Desapareceram os jegues, os feirantes e os loucos líricos...

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