Depois de passar o primeiro mês de disputa das primárias democratas em
baixa pelos resultados fracos em votos e baixa arrecadação de verba para
campanha, o ex-vice presidente dos Estados Unidos Joe Biden foi o grande
vencedor da “superterça” – falamos sobre o que ela significa em nosso último
artigo. Superficialmente explicando, a “superterça” ocorre na primeira
terça-feira de março (03/03), onde eleitores foram às urnas em 14 Estados
americanos e um território para apontar quem deve representar o partido Democrata
na disputa presidencial contra o republicano Donald Trump, em novembro desse
ano. O bom resultado de Joe Biden — que venceu em ao menos nove Estados, contra
três de seu principal opositor, o senador socialista Bernie Sanders — foi
possível em parte graças a um movimento calculado e executado nas últimas 48
horas pela ala moderada e pela máquina do partido. Alarmados pela vitória do outsider
Sanders nos três primeiros Estados em que houve votação (Iowa, New Hampshire e
Nevada) e incentivados pelo desempenho positivo de Biden na Carolina do Sul, no
fim de semana anterior, os democratas decidiram que era a hora de evitar
divisões internas, que nitidamente favoreciam Sanders na obtenção de maioria, e
se unir em torno de um nome que não apenas pudesse vencer Trump, mas que
representasse o que os democratas historicamente reconhecem ser sua identidade.
Em jogo no dia 03 de março estavam mais de 1.344 delegados — 1 em cada 3
disponíveis —, que, se não garantem a nomeação definitiva, dão ao candidato uma
vantagem expressiva na corrida à vitória, que depende da conquista de 1.991
delegados. O resultado da delicada estratégia foi uma virada no segundo maior
Estado em delegados. O Texas, onde pesquisas recentes indicavam uma vitória
relativamente folgada a Sanders, acabou nas mãos de Biden, que também saiu
vitorioso da Virgínia e da Carolina do Norte, dois dos chamados “estados-pêndulo”
(swing states, como são chamados em inglês), onde os eleitores alternam
suas preferências entre republicanos e democratas a cada eleição. Biden levou
ainda Alabama, Arkansas e Tennessee. O ex-vice presidente provou sua força ao
obter a liderança em dois Estados em que sequer foi visitar durante sua
campanha: Massachussets, no qual a concorrente progressista Elizabeth Warren é
senadora, e Oklahoma. O pivô da mudança interna no partido Democrata foi a
vitória consistente de Biden na quarta rodada primária, a Carolina do Sul — com
29 pontos percentuais sobre Sanders, em segundo. O segundo movimento nesse
xadrez partidário interno foi o anúncio da retirada das candidaturas do
ex-prefeito Pete Buttigieg e da senadora Amy Klobuchar. Juntos, ambos
amealharam 33 delegados na disputa. Não é um número expressivo, mas pode ser
relevante em uma disputa apertada. Na véspera da “superterça”, o terceiro lance
do xadrez: tanto Buttigieg quanto Klobuchar explicitaram apoio a Joe Biden, e
pediram a seus seguidores que o votassem nele. Quem ainda seguiu o mesmo padrão
foi o senador Beto O'Rourke, que também figurou na lista de pré-candidatos
democrata para 2020. Todos eles endossaram o movimento WeKnowJoe, ou,
"nós conhecemos o Joe", uma alusão direta à insegurança que Sanders
gera entre os democratas históricos por sua desconexão com a história e com os
objetivos do partido. Visto como um herói democrata em um Estado com 228 de
delegados, O'Rourke lançou seu peso político em favor de Biden não só por
acreditar que Sanders não seria capaz de vencer Trump num confronto direto. Os
democratas temem que a escolha por Sanders, considerada radical, possa afugentar
das urnas os eleitores democratas mais conservadores e resultar em perdas de
cadeiras do partido no Legislativo. Atualmente, graças à maioria que possuem na
Câmara dos Representantes, os democratas têm conseguido bloquear propostas de
Trump. Além disso, para os democratas, a vitória de Sanders poderia representar
uma perda de conexão com a agremiação que ajudaram a construir. O temor dos
democratas tem precedente na história recente de seus principais adversários:
em 2016, entre atônitos e incrédulos, os republicanos orgânicos se fragmentaram
em múltiplas pré-candidaturas e viram o outsider Donald Trump vencer
nomes tão tradicionais quanto o texano Ted Cruz, o senador pela Flórida Marco
Rubio ou o ex-governador da Flórida Jeb Bush, cujo irmão e o pai ocuparam a
Casa Branca. Trump defendia medidas opostas aos princípios majoritários entre
os republicanos: protecionismo no comércio, austeridade zero nas contas
públicas, limites às liberdades individuais. Sua proeminência acabou por
descaracterizar a legenda e levou republicanos históricos a se dobrar a uma
“doutrina Trump” sob pena de perderem suas vagas legislativas. Crítica
semelhante tem sido feita a Sanders, chamado pelo staff democrata de
"Trump da esquerda". Ele defende um sistema universal de saúde,
custeado com verba pública e quer proibir opções de convênios médicos privados.
Advoga por controles do mercado para as gigantes da tecnologia, elogia inimigos
americanos históricos, como o líder da revolução cubana Fidel Castro e é
acusado de ser leniente com os regimes de esquerda da Venezuela e da Nicarágua.
Sanders propõe ainda anistiar a dívida estudantil de milhões de americanos,
extinguir órgãos de controle de fronteira e acabar com deportações de
imigrantes ilegais.
Simpatizantes de Sanders acusam os democratas de tentar ignorar a vontade popular e tomar novamente uma decisão errada ao escolher Biden. Para eles, o ex-vice presidente vende o passado, uma posição centrista que não responde aos anseios sociais, o estilo político tradicional que dominou Washington nas últimas décadas e gerou repulsa em boa parte do eleitorado americano. As próximas semanas e meses prometem uma disputa acirrada entre Biden e Sanders. Independentemente de quem vença, resta a dúvida se os democratas conseguirão recolher todos os votos possíveis para tentar vencer Trump após intensas acusações e tensões entre seus dois principais nomes.