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Metralhadora médica

Como uma metralhadora, a médica dispara perguntas em sua direção, mas não ouve suas respostas

01/08/2016 17:56

Sua filha tosse sem parar desde os dois meses e meio. Essa tosse não regride e frequentemente causa vômitos. Você põe a mão no peito ou nas costas de seu bebê e sente – e ouve – um chiado permanente. O pediatra e a gastropediatra te dizem insistentemente que ela não tem nenhuma secreção no pulmão. A tosse, segundo eles, é uma alergia respiratória, uma manifestação secundária comum em crianças com alergia à proteína do leite de vaca (APLV), agravada pelo refluxo, também comum em crianças com APLV.

Você, mãe, não descansa. Não dorme. Pensa que o bebê está com pneumonia ou algo ainda mais grave. Insiste com os médicos. Diante da negativa, você busca a solução: encontrar uma pneumologista ou alergologista pediátrica.

Você encontra a melhor profissional da cidade nessas duas especialidades. Muito bem recomendada, a médica tem a sala de espera cheia de mães que relatam a dificuldade que a profissional tem de ouvir seus relatos, mas a plena confiança na medicação que ela prescreve.

Então, você pensa que está preparada para uma profissional rude. Mas quando você entre no consultório, nada poderia ter te preparado para aquela máquina. Como uma metralhadora, a médica dispara perguntas em sua direção, mas não ouve suas respostas.

Como se fosse membro da inquisição, ela te condena porque a criança está na creche; condena porque você trabalha o dia inteiro e a casa onde a criança mora fica fechada; condena porque a criança tosse muito e a culpa é sua, que não fica com sua filha.

A metralhadora não para. Prescreve medicamentos, bombinhas e sentencia: “sua criança não deveria tomar esse corticóide, mas como fica na creche, vai ter que tomar. Compre e traga aqui, pra eu ensinar você a administrar; essa criança vai ter asma, vai viver medicada a vida inteira”.

E você sai de lá morta, arrasada, mas não pode chorar. Tem que ser forte, tranquilizar a sua mãe, que te ajudou a levar a criança à médica, mas foi “gentilmente” convidada a se retirar do consultório enquanto a doutora destilava seus conselhos de especialista.

Mesmo arrasada, culpada – ou talvez até pra aliviar isso – você compra os remédios prescritos e retorna ao consultório no dia seguinte, com o pai da criança, para aprender a medicar sua filha. A recepção da médica consegue ser ainda pior: “eu vou ensinar você, mãe, porque não confio no pai. A mãe é que tem que dar o remédio. Esse remédio tem um protocolo, apenas uma pessoa pode dar”.

Acuada, você tenta explicar que a criança tomará o remédio, pelas mãos de um dos dois. E tenta dizer que o pai é pai, tem o mesmo cuidado que você, mãe. O que você escuta? “Você não fica nem um tempinho no dia com a sua filha pra poder dar esse remédio? Então, vou ensinar ao pai, já que você não cuida, não fica”. E você ali, esmagada, sem força pra responder. Quando chega ao carro, as lágrimas não conseguem dizer da sua dor. Do estrangulamento da sua maternidade.

Passa-se um mês e meio. Você fez tudo direitinho, sua filha – como é de costume – tomou a medicação conforme prescrição. Fez os exames que necessitava fazer. Tudo certo. Opa! Tudo, não. A tosse persiste. Menos insistente, com menos episódios de vômito, mas persiste.

Como combinado, você volta ao consultório para mostrar os exames que a médica solicitou. Por precaução, leva outros, solicitados pela gastropediatra, que demonstram o refluxo da menina.

A senhora especialista nem te olha. Diz apenas que os exames estão normais. Não há secreção no pulmão. Diz que a criança não tem nenhuma alergia alimentar.

Você ainda tenta dizer que foi feito o diagnóstico de APLV meses antes e que agora, como o exame de mediação deu negativo, o pediatra pediu para fazer outro para decidir se faz a provocação oral.

Ela nem te ouve. Repete que a criança não tem APLV. Não olha os outros exames. Diz que não foi ela quem solicitou e que, por isso, você tem que mostrar a outro médico.

Quanto à tosse, diz “é gripe”. E arremata: “faça o que eu disse e, se tudo estiver certo, você só precisará vir em setembro”.

E você sai de lá – de novo – arrasada. Violentada. Certa de que não deseja – nunca mais – estar ali.

Mas você sabe que, se a sua filha precisar, você voltará. Pelo menos enquanto não encontrar um outro alergologista/pneumologista pediátrico. De preferência, que também atenda pelo seu plano de saúde.

Em relação à médica, você já nem consegue ter raiva. Pena talvez seja o sentimento mais próximo ao que você sente. Pena por ela ter tanto conhecimento e ser desprovida de humanidade. Pena por ela ter se perdido, como pessoa, como mulher, em algum momento de sua existência.

Você lamenta por ela. Por você. Pelas crianças, pacientes dessa senhora bambambam. Pelas outras mães, desamparadas como você, que se sujeitam a isso em busca da saúde de seus filhos.

Você lamenta principalmente por sua filha. Por ter sido você a levá-la a uma profissional, especialista, que não conseguiu ver a criança linda que ela é. Enxergou apenas a doença que essa senhora, médica especialista a melhor da cidade, pensou que sua filha tinha e tem. 

Por: Viviane Bandeira, jornalista e mãe da Laura, de uma estrelinha e da Luísa
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