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Carta a uma médica

Lembram que eu falei aqui sobre a minha experiência num certo consultório médico? Pois bem. Redigi uma carta à especialista médica e escrevi ao plano de saúde e à Agência Nacional de Saúde Suplementar

17/08/2016 14:58

Lembram que eu falei aqui sobre a minha experiência num certo consultório médico? Pois bem. Redigi uma carta à especialista médica e escrevi ao plano de saúde e à Agência Nacional de Saúde Suplementar. Meus objetivos são:

1.Com o plano de saúde - levá-los a credenciar outros médicos nas especialidades pneumologia e alergologia pediátricas e a conhecer a conduta de uma profissional credenciada, adotando as medidas necessárias ao caso;

2.Com a Agência Nacional de Saúde Suplementar - dar conhecimento da informação junto ao plano de saúde, para o devido acompanhamento e providências;

3.Com a médica - contribuir para que ela reflita a respeito de sua postura e mude a conduta em relação aos pacientes e suas famílias. 

Como recebi vários comentários (alguns chamados privados) sobre esse assunto, compartilho agora a carta, na íntegra, retirando apenas o nome da profissional de medicina. 

Não sei se essa carta vai adiantar alguma coisa, mas serviu para aliviar meu coração. O que, para mim, já ajuda. 

Obrigada por me acompanharem e por toda a ajuda. 


Segue a carta:


Prezada Dra. XXXXXX,

Há cerca de um mês e meio, nós nos vimos pela primeira vez. Eu, mãe aflita, levei a minha filha caçula, de pouco menos de seis meses, para uma consulta. O quadro era de tosse frequente, chiado no peito, vômitos. Minha filha estava doente. E eu, angustiada, com coração apertado.

Você havia sido muito bem recomendada por colegas seus, também médicos, mas de outras especialidades. Embora dois pediatras e a gastro tivessem me dito reiteradas vezes que o quadro da minha filha era comum em crianças com APLV (o que é o caso dela), ainda assim eu quis para a minha filha o melhor. Eu quis levá-la até você. Eu confiei nas recomendações que recebi. Confiei em sua perícia. Esperei encontrar em seu consultório não apenas o diagnóstico, a prescrição e o tratamento, mas também o auxílio, o acolhimento que toda mãe com filho doente espera encontrar num profissional de medicina.

De fato, encontrei diagnóstico, prescrição e tratamento. Mas encontrei também a mais severa juíza. O mais cruel inquisidor.

Você me encheu de perguntas. E não parou para ouvir nenhuma de minhas respostas.

Não quis saber o histórico de minha filha. E quase me crucificou porque a minha criança frequenta a creche desde os três meses. Você não quis entender a dinâmica de minha família. Não escutou quando tentei explicar por que optamos por não contratar babá. Você não ouviu que não temos alguém da família com quem deixar nossa filha enquanto trabalhamos. Nunca esquecerei o seu olhar, o seu tom de voz.

Jamais se perderá de minha memória a sua sentença, que para mim soou como um fuzilamento. “A casa em que essa criança mora deve ficar o dia todo aberta. Essa criança não deveria usar corticóide, mas como você não vai tirá-la da creche, vou ser obrigada a prescrever. A sua filha é um bebê chiador. Provavelmente ela vai ter asma. Vai viver o tempo inteiro assim, com corticóide. Eu estou tentando tirar sua filha da crise”. Cada palavra sua foi uma punhalada em mim. E em cada palavra, mesmo sem dizer expressamente, você deixou claro que só havia uma culpada pelo quadro de saúde da minha pequena: eu.  

Eu, a mãe incompetente. A mãe que matricula uma filha na creche, quando deveria estar em casa com ela. A mãe que trabalha o dia inteiro e – por isso – deixa a casa fechada. Eu, a mãe desnaturada que não contrata sequer uma babá para ficar em casa com a filha. E como minha filha não pode trocar de mãe, ela viveria doente.

Eu me lembro de cada palavra. Lembro a frieza do seu olhar. Lembro a minha solidão ali, naquela sala, olhando pra você, privada da companhia da minha mãe, que tinha ido comigo à consulta, mas foi convidada por você a se retirar do consultório após o exame da minha pequena.

Aqueles poucos minutos da consulta foram suficientes para você fazer o diagnóstico não da minha filha, mas de toda a minha vida. Suficientes para me desqualificar como mãe, como mulher, como pessoa.

Lembro que a minha vontade, ao sair do consultório, era abraçar a minha filha longamente e chorar. Mas eu não podia. A mãe irresponsável e desnaturada que sou precisava ir à farmácia, comprar os remédios prescritos, e ainda manter a calma diante da criança e de sua avó, alarmada com o que eu – também filha – trazia no olhar.

Certamente você não se deu conta de nada disso. Não percebeu o impacto de suas palavras e de sua atitude. O contato comigo foi apenas mais um, naquele dia de tantas consultas rápidas.

No dia seguinte, como determinado por você, eu fui novamente ao consultório. Meu marido foi junto. Sabia o quanto eu estava destruída pelo dia anterior. Eu confiava que aquele primeiro encontro tinha se dado num dia ruim para você. Que nós nos veríamos e eu descobriria humanidade na médica que me ensinaria a usar um espaçador com a minha filha.

Na sua primeira frase, a esperança ruiu. De novo, você imprimiu cada fonema em minha lembrança de forma indelével. “Eu vou ensinar você a usar. Não vou ensinar ao pai. Só confio na mãe para dar remédios”. Quando eu, timidamente, disse que você teria que confiar no pai, que um de nós dois daria o remédio à minha filha, você, cortante: “Esse remédio tem um protocolo, só uma pessoa pode manusear. Ou é você, ou ele. Dar remédio é coisa de mãe. Você não fica nem um pouco de tempo com sua filha, que possa dar um remédio a ela?”.

Você certamente não sabe o quanto foi cruel. Desumana. Provavelmente, aquele foi um dia normal, com conversas normais. Orientações que você, todo dia, dá a mães tão angustiadas quanto eu. Provavelmente, muitas delas saiam da sua sala como eu, destruídas, violentadas.

Eu não sei como é a sua vida. Não sei que tipo de relacionamentos você vivenciou, presenciou ou teve referências. O que eu sei, doutora, é que não é humano falar assim com uma mãe, com uma família. Não é humano sentenciar como errado o modo de vida de outra pessoa.

Eu não sei por que você não confia em pais para ministrar remédios aos filhos. Sei que você deve ter suas razões, mas peço que – da próxima vez em que uma família for ao seu consultório, você tente olhar um pouco fora de suas referências, fora da caixa. Há pais – como o meu marido – que não são bibelôs de decoração na casa, mas pais de verdade, que participam de tudo na vida dos filhos, inclusive dos momentos de dar remédio, comida banho, etc.

Eu sei que você é mãe. Imagino que, como mãe, teve que fazer escolhas. Imagino também que, como médica, você receba cobranças sociais de toda sorte. Por isso peço que tente sair da pose de autoridade que você assume no consultório e tente enxergar as mães que procuram sua ajuda.

Talvez você nunca tenha vivenciado a aflição de ver um filho doente, buscar ajuda e encontrar julgamentos. Ou talvez você seja tão julgada que – sem perceber – reproduza esse julgamento com as mães de seus pacientes. Não sei. Não sou capaz de julgar.

Mas peço que você faça um exercício de se colocar no lugar das mães que a procuram. Imagine, por exemplo, que um de seus filhos esteja indo mal na escola, não consiga aprender determinados conteúdos. Você, então, procura a escola, em busca de ajuda da equipe pedagógica. No lugar da ajuda, você recebe um sonoro “seu filho não aprende porque você não o acompanha, porque começa no consultório às 12h30. Você não consegue passar um tempo com seu filho para ajudá-lo a aprender?”. Conseguiu imaginar? Isso doeria?

É isso o que você faz com as mães de seus pacientes, só que de uma forma mais grave, porque você imputa a essas mulheres a culpa pela doença de seus filhos. E sim, eu agora estou julgando o seu comportamento, a partir não apenas do que vivi no seu consultório, mas também de relatos de outras mães, na sala de espera. Não vou repetir esses relatos aqui, porque falo apenas por mim, pela minha dor.

Na última vez que nos vimos, dia 1º de agosto, você simplesmente desconsiderou alguns exames que levei, apenas porque não foi você quem os prescreveu. Você desconsiderou a possibilidade do resultado de um deles (o do refluxo) ter influência no quadro de tosse da minha filha. De novo, você foi taxativa: “a doença dela é de creche; gripe; enquanto estiver na creche, vai viver assim, de nariz escorrendo”. De novo, o som cortante, julgador, de sua voz em minha mente.

Quero deixar claro que não estou desqualificando seu conhecimento como médica. Longe disso. Você tem muito conhecimento, tem ótimas referências. Mas, lamentavelmente, falta-lhe o conhecimento emocional. A humanidade de olhar cada criança que entra em seu consultório como o que – de fato – ela é: uma criança. Você vê os sintomas, a doença. Não enxerga a pessoa.

Eu não sou médica. Sou professora e jornalista. Convivo profissionalmente desde os 16 anos com diversos tipos de pessoas e suas famílias. Já trabalhei em escolas de classe alta e em escolas de periferia; em jornais e assessorias. Aprendi a ver pessoas, falar com pessoas, não com alunos, fontes ou assessorados. Não sou perfeita. Como profissional e como mãe, tenho muitas limitações.

Num mundo ideal, eu poderia ficar o dia inteiro com minhas filhas, sem precisar trabalhar nem levá-las à creche ou à escola. Num mundo ideal, você também poderia fazer isso.

Eu poderia – no mundo real – contratar uma babá e manter meu bebê em casa, é verdade. Mas por um sem número de motivos, babás não são opção para a minha família. Quero deixar claro que digo isso não para me justificar – até porque não preciso, mas para que você pense um pouco sobre a dinâmica de cada família. A dinâmica da sua família, inclusive. Com quem ficam seus filhos, quando você vai trabalhar? Eles nunca adoecem? Não sentem sua falta e nem você a deles? Manter sua vida profissional diminui você como mãe, faz de você uma mãe ruim?

O que quero dizer, doutora, é cada família sabe de si; age com o melhor para si. A minha e a sua são assim. Perfeitas em suas imperfeições.

Quero pedir que você seja mais humana. Que olhe para as pessoas que buscam sua opinião sobre um quadro de saúde. Que dedique mais que os cinco ou dez minutos de uma consulta de retorno para avaliar a evolução de um paciente. Que tenha menos julgamentos, menos dureza no olhar.

Se não for pedir muito, quero que lembre diariamente o juramento que fez no dia de sua formatura; o idealismo que aquela jovem médica certamente guardava. Quero que tente ver em cada paciente seu filho, doente; em cada mãe, você mesma, em busca de auxílio.

Porque quando uma mãe leva o filho ao médico, doutora, ela procura um médico de verdade, competente, sério, comprometido e – sobretudo – humano. Um médico que olhe para suas aflições e a acalme. Um médico que a faça sentir forte para enfrentar a doença do filho.

Nenhuma mãe precisa ser julgada. Nenhuma mãe precisa sair de um consultório fraca, culpada, destruída. Nenhuma mãe precisa de tanta desumanidade.

Eu a procurei porque me disseram que você era a melhor da cidade em sua especialidade. Eu a procurei porque tento dar sempre o melhor para minhas filhas.

Mas eu não encontrei a melhor médica. Eu encontrei uma juíza implacável. Provavelmente, também não sou a melhor mãe de paciente, você deve estar pensando. Não sou mesmo, nem desejo ser. Apenas desejo que a minha dor, externada nesse longo desabafo, faça você refletir e mudar seu comportamento com as mães que, como eu, pensam em você como a esperança para a saúde dos filhos.

Desculpe por tomar seu tempo.

Seja feliz.

Viviane Bandeira

Mãe da Luísa Bandeira (sua paciente) e da Laura Bandeira

9 XXXX-XXX7

9 XXXX-XXX7

[email protected]

Por: Viviane Bandeira, jornalista e mãe da Laura, de uma estrelinha e da Luísa
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