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Viajar para contar: A segunda carta

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27/08/2015 10:47

Nesta cidade a sensação é de que está nublado constantemente. Muita nuvem, nenhum rastro de céu azul e um calor que sempre vem em excesso – lá fora e dentro do meu peito. Amanheço diariamente com o coração inquieto, do avesso. Tudo aqui ainda tem gosto de novidade.

Habituei-me a algumas expressões, às cores, aos vendedores ambulantes de livros, frutas cortadas, às ruas sempre tão largas e aos “Buenos Dias” frequentes. Sinto-me uma parte clandestina desta cidade. Mas ainda acordo ansiosa, como se fosse me surpreender a qualquer momento com as tarefas que, para mim, agora são comuns no meu dia.

Ah Geena, tenho vivido coisas incríveis em tão pouco tempo! Pareço uma boba se eu lhe disser que ainda me surpreendo diariamente com algo tão simples como ter minha própria cozinha e ir ao supermercado três vezes por semana? Quem sabe eu fugi de mim mesma para poder me encontrar em outro lugar. Dentro de um supermercado, talvez, escolhendo atentamente as melhores verduras.

Desde aquele tempo em que comecei a trabalhar, quando nos conhecemos, eu nunca tive tempo de organizar meu próprio tempo. É como se minha vida estivesse a mercê do trabalho e dos estudos. Nunca me sufoquei com isso – até gostava – mas agora que estou submersa em uma vida completamente diferente, sinto que precisava mesmo me aventurar neste presente incerto.

E o que mais gosto é do silêncio. Daqui de dentro deste apartamento de pouco mais de dez passos, só escuto os carros buzinando na rua, na correria. Aqui dentro tudo anda devagar. Descubro-me sendo outra a cada gesto: na escolha da comida, no quarto limpo, nos livros lidos e na porta sempre aberta para novas imersões. Mas nem tudo são silêncio e calmaria. Tenho samba para dançar até de manhã e poesia para ler quando me cansar.

Estar aprendendo um novo idioma na prática tem suas vantagens. Passei a observar mais. E a ouvir. Sinto-me uma intrusa: na sala de aula, no supermercado, dentro dos ônibus coloridos, nas praias e na pracinha. Sigo sempre em silêncio, sendo a estrangeira da vida que sempre fui, mas agora sou de verdade. Carne, osso e uma alma afoita.

Posso contar um segredo, minha querida amiga? Que bom que eu escolhi ser passarinho nesta vida onde predominam os leões! Tenho o corpo frágil, mas asas que suportam o mundo.

Mas chega de falar de mim. Quero muito saber, Geena, o que anda acontecendo com você. Já sabes meu endereço e esta é a segunda carta que lhe envio. Apesar dos meus simples voos e de minhas asas tão fortes, preciso de suas palavras para voar mais alto, você sabe disso.

Responda-me, minha amiga.

Por: Eli
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