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Nunca me ensinaram a partir

[Uma Carta para uma grande amiga]

17/07/2015 00:09

Minha queridíssima Geena! Quantas saudades suas! Na confusão da mudança, não consigo encontrar tuas cartas endereçadas a mim. Passei o final de semana inteiro procurando suas palavras e não encontrei nada além das lembranças guardadas com muito carinho em meu coração.

Mas preciso escrever-te antes de partir! A vida deu uma grande reviravolta e eu, que sempre me precavia para que nada saísse do planejado, fui surpreendida. Talvez ainda não tivesse chegado aos seus ouvidos nada a respeito de minha partida. Não se preocupe, explico-te tudo com clareza no decorrer das próximas linhas.

Acredito que você, minha tão amada amiga, tenha ciência da importância que a produção literária possui em minha vida. Antes de revelar a reviravolta que me ocorreu, sinto que devo esclarecer-te uma série de coisas. Espero, de verdade, que minhas palavras não te cansem.

Desde que vim morar no Rio de Janeiro, tenho escrito incessantemente, como se minha vida real dependente única e exclusivamente de todas as histórias criadas e construídas sobre cada folha em branco que entrava em meu pequeno apartamento. Infelizmente, morando sozinha e sem nenhuma ajuda financeira, palavras fantasiosas não bastavam para o meu sustento. Para ser franca, nunca vão me bastar. Então consegui um emprego em um jornal pequeno, próximo ao meu prédio.

Trabalhar dentro de uma Redação Jornalística sugava diariamente minha alma. Durante alguns anos, adquiri vícios pontuais e hábitos deliciosos. Apesar da rotina cansativa, a cidade maravilhosa, seus bares, seus cafés e meus porres de vinho, fizeram com que eu me dedicasse ainda mais a minha escrita. Como a vida é inspiradora para nossas produções, Geena!

Nesse tempo, aprendi um mundo inteiro de coisas incríveis. Prendia-me àquela rotina de jornal-porres-amigos-escrita. Aprendi a escrever matérias de todos os tipos, a viver sozinha, em dupla, ou até mesmo guiada por uma multidão de amigos. Ah Geena, aposto que você deve está reprovando minhas atitudes a cada linha escrita nesta carta!

Não julgue tanto esse meu jeito de ser. Você não sabe, mas já joguei no lixo diversas cartas endereçadas a você, falando mal da vida que eu levava. Das pautas policiais, das fontes arrogantes, da exploração trabalhista, do pouco salário. Assim como amassei muitas cartas falando de meus colegas de trabalho. Como amo todos eles! Cada um, intensamente. Fervorosamente. E, exatamente por isso, prendia-me tanto àquela rotina maçante. Só sei trabalhar, sabendo amar. Aprendi tanto com todos. Só nunca aprendi a partir. E, por isso, estou aqui, escrevendo tanto a você e tentando esconder as lagrimas. Se eu passar esta carta a limpo, talvez você nem note que eu chorei a noite inteira de hoje, como chorei ontem e antes de ontem ou a semana inteira. Mas prefiro que você veja tudo isso, minha amiga.

Chorei porque preciso partir, preciso deixar tudo que construí nesta cidade, interromper projetos futuros por projetos que surgiram e deixaram minha vida do avesso. Mas, durante todos esses anos de aprendizado, nunca aprendi a partir.

Acredito que ainda não esteja tão claro a você o motivo de todo este drama. Peço desculpas a você, minha amiga, por não conseguir sintetizar as histórias. Faz tanto tempo que não te escrevo que agora não consigo mais parar. Que saudades, minha Geena!

Estou exatamente no melhor momento da minha vida, abraçando e aceitando a oportunidade que sempre quis ter. Mas não aprendi a partir. Não sei proceder nesse tipo de ocasião. Aperto a mão de meus amigos e dobro a esquina, silenciosamente? Junto todos naquele café aconchegante próximo a praia? Parto sem comunicar a ninguém? Ou me reúno apenas com alguns poucos no barzinho sujo e tão querido da turma?

Já escrevi diversos bilhetes iguais apenas com os dizeres “Vou ali realizar um sonho e já volto”. Minha ideia é coloca-los no bloquinho de todos que trabalham comigo. No fim do expediente e sem ninguém notar. Mas desisti da ideia.

O fato, minha querida, é que recebi uma proposta de um grande amigo que mora fora do país. O carteiro me entregou a carta que informava o nome do remetente conhecido, mas vindo de um lugar estranho. Barranquilla, na Colômbia, você acredita? Dentro do envelope, tinha muito dinheiro para comprar minhas passagens e uma carta me comunicando que uma editora daquela cidade havia lido um rascunho de um dos meus livros e queria que eu fosse passar alguns meses por lá para que pudéssemos acertar todos os detalhes da produção do meu livro. Meu primeiro livro! Você acredita? Fiquei extremamente feliz e imediatamente mandei um telegrama respondendo aquela proposta dizendo: “Aceito! Embarco daqui a duas semanas. Reserve meu colchonete, o café e o vinho!”.

Mas eu não sabia como seria difícil viver essas duas semanas que separavam a decisão tomada de maneira tão impensada, do meu embarque. Nunca aprendi a partir. E isto me dói. Não quero interromper o percurso tão intenso e produtivo que estou vivendo. E meu emprego? E as amizades? E os novos projetos que estavam sendo iniciados?

Mas, ao mesmo tempo, sinto que preciso ir. Com todas as minhas forças, por Deus, Geena, p-r-e-c-i-s-o partir! E hoje, no último dia, antes da partida, estou aqui, revelando-te toda a situação. Chorando. Sozinha. Olho para minhas malas ainda por fazer. Tomo várias xícaras de café. Escuto tantas musicas que deixo passar sem dar a devida atenção e não sei o que fazer. Apesar de já ter como certa minha decisão e que ela não tem volta. E que, mesmo com o coração partido, pela iminente partida, sei que quero que a volta aconteça somente em alguns meses, quando meu livro estiver pronto. E prometo: voltarei!

Além disso, você sabe, preciso voar. Fiz-me passarinha desde que pousei meus pés nesta cidade maravilhosa. Apesar de ama-la e amar tanto meus amigos, são as mudanças, os voos que me sustentam neste vasto mundo. Ah, minha cara! Não há nada mais prazeroso para mim do que mergulhar de corpo, alma e sensações, no obscuro de todas as aventuras que aparecem em minha frente. Mesmo não sabendo partir, admito que não existe coisa mais encantadora nesta vida!

Embarcarei amanhã bem cedo. Logo mais estarei enviando a você o meu novo endereço. Escreva-me, por favor. E não se preocupe: nunca aprendi a partir, mas sei ir. E não quero que nossa amizade se perca por entre os nossos voos.

Te amo, minha amiga!

Rio de Janeiro, 1984.

Por: Eli
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