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Um ensaio sobre a cegueira

"œPenso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem" (Saramago, Ensaio sobre a cegueira, CIA das Letras, 1995)

10/04/2020 17:32

O meu texto de hoje é inspirado no livro do grande escritor português, José Saramago, ganhador do Camões de 1995 e do Prêmio Nobel de Literatura em 1998, Ensaio sobre a cegueira, no qual ele  realiza uma imersão no universo humano e nos lugares mais longínquos e desconhecidos da alma, onde perpetuam os desejos, o ódio e os valores que carregam em si, a carga de um mal, pautada na individualidade construída em meio à uma sociedade moderna, marcada pela supremacia do EU, do egoísmo, em detrimento dos valores comunitários e sociais. 

O autor explora uma essência do humano que é, em si, desumana, nosso pior lado. Tratando de uma epidemia de cegueira, a narrativa revela o que se esconde nas sombras de cada um, quando ninguém pode ver, quando os instintos e os valores pessoais sobrepujam a vontade coletiva, a ética se esvai e o humano se degrada completamente, se tornando um ser irracional, muitas vezes. O pensar em si, em detrimento do outro é o guia da cegueira coletiva. 

Na narrativa de Saramago, a mulher do médico é a única a manter a visão e, portanto, a única a poder ver o que há de mais belo e o que há de pior naquela situação de epidemia, que se localiza em uma cidade não nomeada. Simboliza, a razão, simboliza a possibilidade de renascimento do humano.

Ao afirmar que “Cegueira também é isso, viver num mundo onde se tenha acabado a esperança”, Saramago nos chama para a razão, nos esfrega na cara que a esperança se esvai quando a humanidade perde a potência do olhar. Lembrando Hannah Arendt em A vida do espírito, somente existimos porque possuímos aparatos do ver, não somente do ponto de vista físico, que detalha nossa aparência e a aparência do que vemos e/ou do que narramos, mas, principalmente, do ponto de vista do pensamento, das construções culturais e sociais coletivas. O olhar para além dos olhos, embasado nas possibilidades de desenvolvimento de um pensar, de um pensar crítico.

Saramago é cruel sim ao nos revelar claramente o que somos enquanto hipócritas e egoístas, que adoram fazer caridade, mas que não desejam a igualdade de oportunidades e direitos. Sobretudo, nos expõe em nossa incapacidade de compartilhar. O escritor em sua narrativa densa e violenta em muitos sentidos, apresenta cenas que nós em nossa hipocrisia, não suportamos ver, como as cenas de estupro coletivo, mesmo sabendo que elas povoam nossas cidades e massacram nossas mulheres diariamente. A exploração da miséria humana é uma constante na narrativa de Ensaio sobre a cegueira, mostrando que não passamos de irracionais. Desde a briga pela comida à delimitação dos espaços de poder dentro do manicômio para onde são enviados todos os contaminados pela cegueira coletiva.

Mas porque trago a narrativa de Saramago para o Brasil de hoje? Espero que a maioria que chegou até aqui já tenha lido o livro e, portanto, a explicação não precisará ser longa, até porque não temos espaço. 

Trago porque em nosso Brasil e mundo atuais, a cegueira coletiva que tem tomado conta das mentes de nossos cidadãos em uma construção intencional da ignorância que iniciou com os trolls de Putin há quase 10 anos, com a naturalização das informações falsas, popularizadas como fake News, e que tem se transformado em uma segunda pandemia, como bem falei, em artigos anteriores, visto que mais de 60% dos brasileiros não sabem discernir se uma informação é verdadeira ou não e não sabem sequer recorrer a lugares de checagem, já que ao jornalismo tradicional, não recorrem por ordem das narrativas manipuladas que recebem diariamente em seus grupos familiares de WhatsApp e que descredibilizam o jornalismo. 

O mais incrível é que em momento de pandemia do coronavírus/COVID 19 as fábricas de informações falsas que tiveram seus momentos de maior propulsão mercadológica durante o impeachment da ex-Presidenta Dilma Rousseff e durante as eleições de 2018, voltaram com a carga toda, para apoiar o Presidente Jair Bolsonaro que continua em disputa com o Ministro da Saúde, sobre ações necessárias de isolamento social e uso de medicamentos. 

Gostaria de chamar todas as mulheres de médico, em alusão ao personagem de Saramago que carrega a metáfora da luz, do olhar, do ver e da razão para juntos sermos luz na imensidão da ignorância intencional. Lembrando que nossos cidadãos que continuam cegos e revelam a pior face da miséria humana, ao não se preocupar com os mortos, como se um número pequeno não fosse importante, como os grandes empresários e o povo que os segue, ou seja, não importa se até agora morreram mais de 700, número que consideram insuficiente para parar a economia do país; estão cegos, por um processo intencional de manipulação para mudança comportamental baseada em valores intrínsecos à nossa cultura. Elas e eles podem voltar a ver. Precisamos despertar o pensar em quem ainda não consegue enxergar.

O convite que trago de Saramago é para que recuperemos a lucidez perdida para o mercado das informações falsas, mas também perdida para valores conservadores que não permitem ver o outro, não respeitam a diversidade, a mulher, os homossexuais, os negros e negras, se preocupam em combater o feminismo como luta por direitos iguais, enquanto fingem não ver os números crescentes da violência contra a mulher, sobretudo, os gritantes números de estupros e feminicídios. Hipócritas de plantão, o convite de Saramago é para que recuperemos afetividade perdida, o amor universal e a benevolência, não localizada em quem prega e/ou anda de arma na mão tendo como alvo qualquer pessoa que pense diferente. 

Recuperar a lucidez significa também refazer o pacto de eticidade coletiva rompido pela miséria dos valores de quem para ter seus objetivos atingidos, acredita que a vida do outro não importa. Precisamos recuperar a ética, reaver os pactos em torno da verdade, precisamos acreditar na importância da ciência, da história e da boa informação que nos traz o jornalismo consciente. A COVID 19 enquanto pandemia revela uma crise civilizatória que esperamos nos leve a superar o egoísmo e a pensar mais no coletivo, no respeito à natureza e em nós enquanto humanos, sem distinção de qualquer tipo. 

Vidas importam, quaisquer que sejam elas. Vidas importam. Ontem perdemos um amigo e para nós já foi mais do que suficiente. Fique em casa. 

Para concluir mais um trecho de Ensaio sobre a cegueira. Qualquer semelhança é mera coincidência?

“Atenção! Atenção! Atenção! O Governo lamenta ter sido forçado a exercer energicamente o que considera ser seu direito e seu dever, proteger por todos os meios as populações na crise que estamos a atravessar, quando parece verificar-se algo de semelhante a um surto epidêmico de cegueira, provisoriamente designado por mal-branco, e desejaria poder contar com o civismo e a colaboração de todos os cidadãos para estancar a propagação do contágio...”.

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