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Modelo belga fala sobre sua intersexualidade

Musa do estilista Alexander Wang, a modelo belga decidiu revelar ao público que é intersexual e se tornar porta-voz da causa, para derrubar preconceitos e evitar que crianças com a mesma condição passem por cirurgias desnecessárias

23/03/2017 17:07

Com duas semanas de vida, Hanne Gaby Odiele teve uma infecção. Seus pais a levaram ao hospital perto da cidadezinha em que moravam, Kortrijk, na Bélgica, onde médicos fizeram alguns exames de sangue e informaram que o garotinho iria ficar bem. “Garoto?”, perguntaram os pais, pasmos. Hanne nasceu com testículos internos e sem útero e ovário. Os exames de sangue revelaram que a criança sofria de síndrome de insensibilidade aos andrógenos (AIS) – mesmo sendo geneticamente do sexo masculino, com cromossomos XY, tinha resistência aos hormônios masculinos.

Quebra de tabu: a top Hanne Gaby Odiele decidiu revelar ao público que é intersexual e se tornar porta-voz da causa, para derrubar preconceitos e evitar que crianças com a mesma condição passem por cirurgias (Foto: Silja Magg)

O médico que atendeu à família nunca havia visto nada parecido e encaminhou o casal a um especialista, que passou as mesmas informações que eles ouviriam pelos próximos anos: Hanne era intersexual, precisaria de cirurgias corretivas e que seria essencial manter tudo em estrito sigilo, inclusive com a própria filha.

Hanne Gaby Odiele em editorial da Vogue Brasil de 2014 (Foto: Henrique Gendre/ Arquivo Vogue)

Hanne hoje tem 28 anos e é uma modelo de sucesso. Desfila para grifes como Chanel, Givenchy e Prada, estrelou campanhas para marcas como Mulberry e Balenciaga. Ela me conta isso enquanto bebe uma taça de champanhe em um restaurante de Nolita, em Nova York. Em um momento em que direitos de trans e gays finalmente passam por saltos notáveis, intersexuais talvez sejam o último tabu quando o assunto é sexo e gênero. A decisão da belga de ir a público revelar todos os detalhes do corpo com que nasceu e se tornar porta-voz e defensora da comunidade intersexual é um ato de enorme coragem. Ainda que reconheça ter sido inspirada por trans como Hari Nef e Andreja Pejic, ela está explorando um território praticamente desconhecido para o grande público.

 Hanne na passarela do amigo Alexander Wang (Foto: Imaxtree)

O termo intersexual é amplo e se refere a mais de 30 condições diferentes em que uma pessoa nasce com uma variação na anatomia sexual. Durante décadas, a maioria dos médicos levava esses bebês imediatamente para a mesa cirúrgica. Ilene Wong, urologista que atende adultos com a condição, diz que “o cenário está finalmente mudando conforme as pessoas ficam mais cientes das consequências. Certas coisas não precisam ser feitas. Em alguns casos há necessidade médica, mas quase todas as cirurgias são puramente estéticas – e podem deixar os pacientes marcados profundamente, incapazes de ter relações sexuais".

Hanne Gaby Odiele na Vogue Beleza China (Foto: Reprodução)

Kimberly Zieselman, diretora executiva da InterACT, organização que defende os direitos dos jovens intersexuais e com a qual Hanne está trabalhando de perto, compartilha uma estatística espantosa: “Quase 2% dos bebês nascem intersexuais. É praticamente o mesmo que os naturalmente ruivos”. Mas quantos viveram (e vivem) cercados de vergonha e sigilo?

Muitas das férias escolares de Hanne eram passadas em consultórios, com estudantes de medicina a observando sem seu consentimento. “Por que todas essas pessoas ficam olhando para mim enquanto estou nua?”, ela se perguntava. Disseram a seus pais que se não tivesse os testículos removidos aos 10 ou 11 anos, ela desenvolveria câncer (prática comum, ela me conta, e uma reação ao medo da sociedade de corpos não binários, quando na verdade crianças intersexuais não têm maior tendência a desenvolver câncer que as outras). Em vez de explicar à filha o real intuito da cirurgia, foram instruídos a simplesmente dizer que Hanne tinha um problema na bexiga.

“Falavam-nos que a condição dela era extremamente rara”, seu pai, Franke, explica. “Naquela época, antes da internet, não tínhamos praticamente nenhum acesso à informação, não sabíamos quase nada. Pensávamos que nunca poderíamos compartilhar esse fato com amigos ou parentes. Nos sentíamos muito sós”, a mãe da modelo, Annie, lamenta.

Se os pais não revelaram a história completa para a filha, foi porque eles também não conheciam toda a verdade. Foi a própria Hanne que, aos 17 anos, finalmente desvendou o caso. “Me sentia uma triste bagunça, os hormônios que tomava estavam acabando com o meu corpo. Sabia que algo estava errado.” Alguns meses antes de ser descoberta por um agente de modelos em um festival de rock em sua cidade, ela estava folheando uma revista para adolescentes quando se deparou com uma matéria sobre uma garota que não poderia ter filhos e que havia passado por muitas cirurgias. “Essa sou eu!”, pensou. “Liguei para a revista, entrei em contato com a menina e então encontrei um grupo de autoajuda na Holanda. Você acha que está sozinha, que ninguém é como você e, então, consegue conversar com outras pessoas iguais.”

Hoje, seus pais fazem campanha para que os familiares de crianças intersexuais sejam abertos e transparentes. “Converse sobre isso com seus filhos, parentes e amigos. Encontre uma equipe médica que lhe informe tudo e que lhe assista também psicologicamente durante todo o processo. Fale com pessoas da comunidade intersexual”, aconselha Anne.

“Os médicos acham que devem ‘normalizar’ o bebê”, diz Hanne, que se dedica a desencorajar o que chama de “cirurgias loucas que são irreversíveis, feitas quando você é jovem demais”. A ONU concorda com ela: em março de 2016, a organização condenou cirurgias genitais não consentidas em crianças intersexuais, pedindo que sejam classificadas como tortura.

Hanne Gaby Odiele e John Swiatek – a noiva usou um vestido feito sob medida por Wang (Foto: Reprodução/Instagram)

A modelo recebeu recentemente os prontuários de sua infância na Bélgica e só agora está começando a compreender a extensão daqueles primeiros procedimentos. Desde os 10 anos faz terapia de reposição hormonal com pílulas anticoncepcionais de baixa dosagem. “É como estar na menopausa desde muito nova. Para alguém que não pode ter filho, é meio irônico”, diz.“Desenvolvi seios normalmente, mas muito tarde. Tudo foi um pouco demorado para mim”, relata.

No início da carreira, ela contou sobre a síndrome para pouquíssimas pessoas. O estilista Alexander Wang, que a escalou em seu primeiro desfile e até hoje a tem como musa e amiga, lembra-se de que Hanne se abriu com ele a caminho de uma festa, há uns cinco anos. “Ela não deixa que essas coisas a desanimem ou afetem sua maneira de pensar ou agir”, elogia. A belga também não tem problemas em responder perguntas que podem parecer profundamente intrusivas. “É preciso muito para envergonhá-la”, diz o modelo/DJ John Swiatek, seu marido. Eles se casaram em julho passado em uma bucólica cerimônia hipster na região de Catskills, no Estado de Nova York – a noiva usou um vestido feito sob medida por Wang.

Hanne (de branco) cercada pelas madrinhas em seu casamento, em julho passado. (Foto: Reprodução/ Instagram)

Há sete anos, quando Hanne contou a Swiatek sobre sua condição, ele reagiu: “Ah, legal. E eu sou adotado”. Com sua franqueza característica, ela declara sem que eu pergunte: “Nossa vida sexual é bastante normal – hetero normal”. Ainda assim, não destaca o que a torna diferente – ou, em suas palavras, “especial”. “Nunca vou saber como é ficar menstruada, ter um bebê. Mas também não tenho pênis e não faço xixi em pé. Sou intersexual, mas sou muito mais feminina. Não estou enfrentando um relógio biológico – não tenho o relógio!”.

Ela fica nervosa por estar se revelando, mas também está exultante. “Era importante para mim fazer essa declaração agora. Quero viver de modo autêntico, da maneira que sou e ajudar a romper o estigma que as pessoas intersexuais enfrentam. Quero usar o que construí com a carreira de modelo para ajudar a quem não tem voz. Quero dizer a elas que está tudo bem – isso é parte de você, mas não é o que te define.”

Fonte: VOGUE
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