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Pacientes judiciários chegaram a ficar mais de 20 anos presos no Piauí

Conheça as histórias de pessoas com transtorno mental que cometeram crimes, da cadeia ao hospital penitenciário, até receber tratamento correto.

09/04/2017 08:19

A lei penal brasileira diz que, independente do crime, o tempo máximo que uma pessoa pode ficar privada de liberdade é de 30 anos, mesmo se condenada a mais tempo. Na prática, é ainda difícil que um preso passe todo esse período atrás das grades, com todas as modalidades de redução de pena. Entretanto, a regra não valeu para um paciente do extinto Hospital Judiciário Valter Alencar.

Ele, que aqui chamaremos de Francisco, passou 32 anos preso no NAPS (Núcleo de Atenção Psicossocial), e o fim da pena só chegou com sua morte. A diferença entre Francisco e outras presos: ele possuía transtorno psiquiátrico, e por conta dele acabou cometendo um crime.

Francisco, assim como tantas outras pessoas com transtorno mental em conflito com a lei, foi preso como um criminoso qualquer, como era feito antes da Lei 10.216/2001, que revogou os dispositivos penais para os “pacientes judiciários”. Antes tratados como bandidos. Hoje, precisam ser considerados como pacientes.

Quem relata o caso de Francisco é o médico psiquiatra Ediwyrton Barros. Ele trabalhou por 12 anos no Hospital Judiciário, e esteve envolvido na desinstitucionalização do lugar. “Era uma unidade totalmente inadequada, que não tinha nenhuma estrutura física ou funcional de hospital”, disse.

 Pacientes judiciários recebem tratamento diferenciado. (Foto: Divulgação)

O hospital foi desativado, e agora os pacientes judiciários devem receber, de maneira compulsória, o tratamento necessário pelo tempo que for necessário. Os destinos de todos eles deve ser voltar para a família ou ir para residências terapêuticas.

Segundo Ediwyrton, o que está sendo feito no Piauí nada mais é do que o cumprimento da Lei, que reza que os pacientes inimputáveis não podem ser apenados, mas sim tratados compulsoriamente da forma mais adequada a cada caso, de acordo com o transtorno em questão.

A mudança é tardia, mas ainda vanguardista em relação ao resto do país. “Há, agora, o entendimento que o encarceramento e afastamento do paciente de sua família não são a forma adequada de tratar essas pessoas”, afirma o psiquiatra.

A justiça considera inimputável (ou seja, aquele que não pode ser responsabilizado) o indivíduo que, em virtude de doença mental ou desenvolvimento intelectual incompleto cometeram crime sem saber o que estava fazendo ou sem poder se controlar. Nessa interpretação, estariam compreendidos os quadros psicóticos (esquizofrenia, transtorno psicótico agudo, episódios psicóticos nos transtornos afetivos) e o retardo mental.

Aos 55 anos, paciente lembra a época ‘das amarras’ em manicômios 

Em seu tempo de trabalho na área, Ediwyrton conta que presenciou muitos absurdos, entre eles, pacientes que fingem ter transtorno mental para tentar escapar da prisão, até famílias que pedem a internação de um parente para "se livrar do paciente". “Já teve juíza que mandou internar uma criança de 12 anos, com retardo mental e vítima de abuso pelo padrasto, junto com pacientes psicóticas adultas; já teve ordem para internação de paciente por ter invadido a casa do promotor para pegar flores no jardim”, relata o psiquiatra.

Dos 20 pacientes remanescentes do NAPS, quando da interdição do hospital prisional, quatro ainda estão no Hospital Areolino de Abreu (por necessidade clínica ou recusa dos familiares em receberem), oito moram em Residências Terapêuticas e o restante está com as famílias.

O médico faz questão de lembrar que não há nenhuma ocorrência de reincidência criminal ou reinternação entre os pacientes judiciários. “Importante ressaltar que os pacientes com transtornos mentais são muito mais frequentemente vítimas de violência do que autores de crimes”, comenta Ediwyrton.

Desinternação

Em janeiro de 2014, cinco mulheres quebravam coco em uma localidade na zona rural de Monsenhor Gil, por volta das 14h, quando foram surpreendidas por um jovem de 21 anos, que gritava que elas estariam agredindo a natureza. Ele pegou um machado, usado por uma delas, e matou duas, enquanto as outras três conseguiram fugir. O rapaz foi preso pela Polícia Militar, que logo identificou que ele estava em surto. O jovem não teve nenhum outro problema com a polícia antes desse caso.

O Piauí foi um dos primeiros estados brasileiros a inserir os pacientes judiciários no sistema de residência terapêutica. (Foto: Divulgação)

A coordenadora de atenção à saúde da Secretaria de Justiça, Agatha Knitter, é quem relembra o episódio. Ela usa o caso como exemplo de recuperação. “Ele ficou preso no sistema normal. Quando foi internado no Areolino de Abreu, saiu do surto em 15 dias. Hoje, está desinternado. Mudou-se para São Paulo e hoje está bem, estudando, estabilizado. Uma pessoa normal”, disse.

Segundo Ágatha, o diferencial foi a atenção da família do jovem, que o visitava todo dia no Hospital Areolino de Abreu. Os pacientes são geralmente levados para o hospital quando estão em surto e precisam ser estabilizados.

No caso dos pacientes judiciários, é preciso ainda uma determinação judicial que libere a desinternação, mas a última palavra é do médico. Entretanto, ainda há situações antigas a serem resolvidas. “Temos ainda muitos pacientes esperando desinternação. No Areolino existem vários pacientes, muitos com alta médica, e o juiz não libera. As vezes não tem nem indicação para internação, mas mesmo assim foi determinado judicialmente”, relata Ágatha.

Futuro

Preso há mais de 20 anos, um homem que vamos chamar pelo nome de Raimundo, poderia ser o caso mais longo de internação de paciente judiciário no Piauí. Abandonado pela família, mesmo em situação estável, ele não tem para onde ir.

Durante esse tempo, Raimundo passou pela penitenciária Major César, pelo Hospital Judiciário Valter Alencar, pelo Hospital Areolino de Abreu e agora está na residência terapêutica, onde faz tratamento contínuo.

O Piauí foi um dos primeiros estados brasileiros a inserir os pacientes judiciários no sistema de residência terapêutica. Trata-se de um modelo de tratamento que visa o retorno do paciente à interação social. É destinada a pacientes psiquiátricos que perderam a estrutura social e familiar e precisam de tratamento e acompanhamento especializados.

Segundo o juiz Vidal de Freitas o tratamento em residências terapêuticas foi considerado modelo pelo CNJ e está sendo levados para outros estados. “Os pacientes são acompanhados por uma equipe de cuidadores, vivem uma vida normal. Lavam suas roupas, preparam comida, plantam hortas, vão à praça”, conta o juiz.


Edição: Nayara Felizardo
Por: Andrê Nascimento
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