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"œA prisão perdeu sua finalidade", declara ex-diretor da Major César

O jurista Ademar Bastos afirma que o sistema prisional brasileiro precisa ser revisto."œO preso vive relegado, pela indiferença do Estado e da sociedade"

15/01/2017 11:59

O advogado e professor Ademar Bastos fala sobre o sistema penitenciário com a propriedade de quem conviveu, por anos seguidos, com a realidade de um presídio acompanhada de perto. O advogado foi o primeiro diretor da Colônia Agrícola Major César Oliveira que, por sua intervenção, foi considerada, à época, pelo Ministério da Justiça, modelo nacional recomendado inclusive para outros estados. Ademar faz críticas duras quanto ao formato de funcionamento do sistema penitenciário. Para ele, ‘a prisão perdeu sua finalidade’. 

Presidiários do Piauí, assim como do Brasil, sofrem com superlotação e falta de estrutura (Foto: Arquivo)

“O fim social da pena perdeu sua finalidade, ele está comprometido por dois principais motivos, que são do ponto de vista econômico e social. O alto custo de um preso hoje onera totalmente o Estado, que é 15 vezes maior que o de um aluno do Ensino Médio na rede pública. O segundo é o comprometimento social, porque se a lei de execução estabelece que o preso tem que ser recuperado e reincluído e que lá no presidio o Estado tem a obrigação de propiciar esses meio, como isso é possível fazer isso se essas penitenciárias estão sendo comandadas por facções criminosas? Com superlotação? Com presos provisórios?”, questiona. 

O jurista afirma que o sistema prisional brasileiro precisa ser rediscutido, revisto e redimensionado. Além disso, cobra a efetivação do acompanhamento das demandas encontradas nas prisões, assistência jurídica e social aos apenados. 

“O preso vive relegado, pela indiferença do Estado e da sociedade. Por conta disso, essa pessoa que chega à prisão tem se embrutecido mais ainda e acaba desaguando no problema que estamos vendo hoje. Como as pessoas querem recuperar um preso se não é oferecido a ele condições de trabalho, de capacitação, de orientação. Hoje, o índice de reincidência criminal chega a 89%. Isso é assustador”, afirma o advogado, ao citar fatos que também são destacados em seu livro intitulado "A Prisão, um Antro de Reprodução do Crime". 

Analisando o cenário em seus pequenos aspectos, Ademar destaca que é essencial uma ação rápida e realmente efetiva para o modo como é organizado o sistema penitenciário piauiense. Mudanças que incluam a efetivação de penas alternativas, combate frontal à tortura, políticas de educação dentro dos presídios e fim da prisão provisória.

Ademar afirma que o sistema prisional precisa ser rediscutido e redimensionado (Foto: Assis Fernandes/ O Dia) 

“É preciso julgar de imediato os presos provisórios. Devemos manter na prisão aqueles que são nocivos à sociedade, presos habituais, reincidentes; mas aqueles presos eventuais, primários, esses serão também apenados, mas a esses devem ser aplicadas penas alternativas. Trabalho, que é uma força poderosa na construção moral, trabalho e oração sem proselitismo, isso eu acredito que pode mudar a violência da qual está habituada esta sociedade”, afirma.

Presos provisórios e superlotação são entraves 

O crescimento da população carcerária mais que dobrou nos últimos dez anos, no entanto, no mesmo período, apenas 280 vagas foram criadas, resultando em uma superlotação das cadeias públicas do Estado. “Por isso, temos que trabalhar para essas pessoas receberem formação profissional dentro dos presídios e, assim, possam sair e ter uma vida regular e honesta”, destaca o juiz de Execução Penal, Vidal de Freitas. 

Segundo Vidal, a presença de facções criminosas dentro de presídios piauienses também é decorrente da superlotação e de um sistema prisional que não proporciona a devida capacitação para promover a ressocialização dos detentos. 

“Com a superlotação, não dá para ter o controle devido da administração penitenciária para evitar a entrada de drogas, celulares, evitar que esses presos comandem ações criminosas. Isso decorre, muitas vezes, de uma política de encarceramento, porque a prisão deveria ficar restrita para aqueles casos de crimes graves ou repetição de crimes de razoável gravidade, porque, muitas vezes, ao se colocar uma pessoa sem experiência no presídio, que não cometeu crime grave, o sistema está contribuindo para o aumento da violência, já que essa pessoa, quando sai, sai pior”, afirma. 

O jurista destaca os resultados de um estudo feito no Rio de Janeiro que constatou que 75% dos presos a cometerem crimes graves, quando voltavam para as ruas, cometiam crimes ainda piores. 

Soma-se a isso, no Piauí, a quantidade de presos provisórios presentes no Estado, que representam mais de 60% da população carcerária. “O Tribunal de Justiça, na figura do presidente Erivan Lopes, e a corregedoria, com o desembargador Ricardo Gentil, estão atuando nisso, está sendo realizado um esforço concentrado. Cabe ao Estado atuar para buscar a criação de novas vagas e maior controle no sistema prisional, é claro. Só prender e sem cuidar da reinserção não está resolvendo, só está aumentando o número de prisões e aumentando o número da violência”, afirma. 

Corregedoria 

O juiz auxiliar da Corregedoria de Justiça, Júlio César Garcez, destaca que o órgão tem concentrado esforços para diminuir a quantidade de presos provisórios. Os esforços fazem parte de um projeto da Corregedoria para ampliar o número de juízes e servidores nas varas criminais do Piauí, ocasionando assim uma maior celeridade nos processos judiciais. 

“Nós estamos com um esforço concentrado em três varas onde há maior quantidade de presos provisórios. Em 12 dias úteis de trabalho, nós tivemos 18 condenações e cerca de 20 solturas com a sentença. Nós dobramos a força de trabalho e pretendemos, depois de julho, ter um relatório preciso do que está acontecendo com essas pautas de audiência, para que possamos, então, dobrar a força de trabalho nas audiências criminais”, esclarece. 

“Nós todos somos seres humanos”, cobra mãe de detento 

Dona Lúcia* tem 60 anos e fala com o pesar de quem, até então, não acredita na situação que tem que vivenciar quase que semanalmente. Ela visita o ilho na Casa de Custódia, onde afirma ver o ilho ser tratado como ‘animal’. 

“Nós todos somos seres humanos, nós todos temos espírito, eu não acredito que tenho que ver meu ilho sendo tratado como animal por um crime que ele não cometeu. Nunca foi julgado. Tenho provas de onde e como estávamos. Ele nunca foi julgado e está aqui”, lamenta. 

Enquanto Lúcia conta sua história, dezenas de outros familiares, que também aguardam serem chamados para a visita, se aproximam para compartilhar relatos muito semelhantes. Segundo eles, superlotação de celas, falta de alimentação apropriada e higiene são constantes nas rotinas dos detentos. “Todo dia é uma humilhação e uma agressão diferente. Lá eles são ensinados a ter ódio”, comenta a tia de um detento. 

Para Carmen*, ela já vivenciou uma mesma história duas vezes. Acusado de tráfico, viu o marido ser preso por 10 meses e, após a soltura, sem oportunidade de trabalho e estigmatizado pela sociedade, reviver uma nova prisão. 

“Quando ele saiu, tinha muita raiva, porque lá dentro eles não são tratados como gente. Quando saiu, tentou arrumar emprego e não conseguiu. Nós temos filhos pequenos, eu queria que fosse diferente, mas como muda?”, relata. 

As precárias condições, ociosidade e maus tratos relatados pelos familiares dos detentos são problemas que se arrastam e, na contramão do objetivo, geram mais violência não só dentro, mas também fora dos presídios. 

*Nomes fictítios para preservar a identidade das fontes

Por: Glenda Uchôa
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