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"œSe não fosse a Lei Maria da Penha, não sei que seria de mim", diz vítima

Após o divórcio, mulher tornou-se alvo de violência doméstica praticada pelo ex-companheiro.

07/08/2016 12:53

“Isso se tornou insuportável e eu adoeci de um jeito que eu cheguei a ir dormir no hospital porque estava em um estado de nervo bem grave e só andava nervosa. Eu queria uma solução para tirá-lo de casa porque virou uma tortura psicológica”. 

Em 2012, o casamento de Marcela* chegou ao fim, após quase 30 anos de casada. Ela chegou a tentar, por diversas vezes, um divórcio consensual, mas seu ex-companheiro se recusou a aceitar. A mulher procurou ajuda de um advogado para cuidar dos trâmites da separação e foi acordado que ela permaneceria no apartamento e o ex-marido ficaria morando em outro imóvel da família. 

Porém, oito meses após a decisão, o ex-companheiro de Marcela permanecia no apartamento. A partir daí, iniciou-se uma série de violências contra ela. Por duas vezes, ele tentou lhe agredir fisicamente e, por ele não sair do imóvel, começaram as pressões psicológicas contra a vítima. 

Violência psíquica e estupro marital estão entre as esferas que não eram compreendidas na legislação (Foto: O Dia)

“Ele bebia, chegava em casa e batia porta, gritava, me ameaça. Eu tinha que sair do quarto porque ele chegava em casa, trancava a porta e eu ficava sem minhas coisas. Antes, se acontecia alguma coisa, ele saia de casa, mas depois que eu pedi a separação, ele não saia nem do quarto. Depois que o advogado dele disse que não tinha acordo, eu busquei a Lei Maria da Penha e, na época que ele me agrediu, eu consegui uma medida protetiva, mas, mesmo assim, continua me perseguindo”, disse. 

A medida estipula que o ex-marido de Marcela fique a 500 metros de distância dela; porém, contrariando a justiça, ele chegou a alugar um apartamento em frente ao seu, cuja visão da varanda era ampla do apartamento que ela morava. Por quase um ano, ele permaneceu morando próximo de Marcela e, somente após ser condenado por dilapidação de patrimônio, pela Lei Maria da Penha, primeiro caso no Piauí, foi que ele se mudou. Durante um ano, foi uma tortura diária”, relata. Além disso, o ex-marido de Marcela foi condenado por estelionato, pela Lei Maria da Penha, após vender um bem de partilha que estava dentro do processo de divórcio, e forjar documentação. 

Com medo do que o ex-marido possa vir a tentar contra ela, Marcela não sai mais de casa sem ser acompanhada por um amigo ou familiar, nem dirige sem um acompanhante. “Só em ser condenado, eu vejo como um avanço. Eu vim tomar conhecido da Lei Maria da Penha quando precisei. Às vezes, a gente vive dentro de uma situação de opressão, mas não enxerga que tem esse apoio à mulher. Pobre de mim se não fosse a Lei Maria da Penha, que tem me ajudado em todo os órgãos que eu busquei até agora”, finaliza. 

*Nome fictício usado para proteger a identidade da vítima

Maria da Penha 

A Lei Maria da Penha, Lei nº 11.340/2006, recebe este nome por conta da história de violência que, por pouco, não tirou a vida de Maria da Penha Maia Fernandes, uma farmacêutica bioquímica que sofreu violência doméstica durante 23 anos. Em 1983, o marido tentou assassiná-la por duas vezes. Na primeira vez, com um tiro de arma de fogo, deixando Maria da Penha paraplégica. Na segunda, ele tentou matá-la por eletrocussão e afogamento. 

Após essa tentativa de homicídio, a farmacêutica tomou coragem e denunciou as agressões e violência que sofria. O caso tramitou lentamente na Justiça, o que repercutiu negativamente na imprensa mundial e, somente em 2002, 19 anos depois, o agressor foi preso. Ele pegou dez anos de prisão, cumpriu dois e foi solto. 

Coordenadorias oferecem assistência às vítimas

As coordenadorias e secretarias de políticas públicas para mulheres são responsáveis pelo enfrentamento a essa violência contra a mulher e têm papel fundamental, tanto na capacitação, como uma forma de trazer a essa vítima condições econômicas de emprego e renda, assim como estrutura para que ela possa se proteger em casas abrigos e de passagem. 

Equipe do Plantão de Gênero atende mulheres, mulheres travestis e o seguimento trans (Foto: Moura Alves/ O Dia)

Além das coordenadorias municipais e estaduais, essa mulher tem ainda o auxílio das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (Deams), Ministério Público e Promotorias Especializadas, Judiciário, Juizado da Mulher, entre outros órgãos que formam uma rede de proteção e oferecem condições para que o sistema de Justiça direcione esta mulher para uma dessas esferas. 

A coordenadora de Estado de Políticas Públicas para Mulheres do Piauí (CEPM-PI), Haldacir Regina, enfatiza que a porta de entrada para a mulher vítima de violência é a delegacia; contudo, elas também podem buscar ajuda nos Centros de Referências, onde terão atendimento psicológico, jurídico e social. 

Se no centro de referência não tiver como solucionar a questão desta mulher, ela é encaminha para o Núcleo da Mulher, que existe dentro da Defensoria Pública, no qual terá acompanhamento de um advogado, atendimento jurídico. E o defensor pode encaminhá-la para uma casa abrigo, caso não tiver para onde ir ou não puder retornar para sua residência. 

“Quando essa mulher chega ao Centro de Referência ou na própria delegacia, ela passa por uma perícia para ver a gravidade dessa lesão, porque isso vai ser incluído no processo dela e ajudar no julgamento contra o agressor. Em alguns casos, há mulheres que vão diretamente ao Cras (Centro de Referência em Assistência Social), porque, às vezes, ela não se sente bem em ir a uma delegacia comum, principalmente se for um delegado, então nós a acompanhamos até lá”, disse. 

Casa Abrigo 

Teresina conta com uma Casa Abrigo que atende três mulheres vítimas de violência doméstica e familiar. Em outubro, será inaugurada a nova sede, que contará com estrutura de brinquedoteca, área para estudo e lazer, assim como um espaço para as crianças, pois, em alguns casos, essas mulheres vão acompanhadas dos filhos. 

“A casa abrigo está mudando de local porque corre o risco dos agressores identificarem e quererem ir até o local para agredir alguma das mulheres atendidas. Essa mulher pode ficar até quatro meses hospedada na Casa Abrigo, mas logicamente acontece de algumas ficarem um pouco mais, porque não têm para onde ir. A própria coordenadora da Casa vai ajudá- la a encontrar um local para ficar até tudo se resolver, e isso demora, mais ou menos, esse tempo que ela fica conosco”, fala a coordenadora Haldacir Regina. 

“Muitas vezes, o simples registro de B.O. já inibe a reiteração daquela prática dentro de casa” 

Anamelka Albuquerque Cadena, titular de Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam/Sul), trabalha há seis anos à frente de delegacias especializadas no atendimento à mulher e ressalta que os principais avanços da lei dizem respeito às buscas pelas delegacias e a criação de políticas públicas voltadas para as mulheres. A partir do momento que essa vítima de violência procura uma delegacia para registrar o Boletim de Ocorrência e a medida protetiva é expedida, há grandes chances de evitar um feminicídio. 

“Nós notamos que a mulher que tem a coragem, se empodera para chegar a uma delegacia e consegue fazer isso para reprimir essa prática violenta dentro de casa. Observamos que ela evita que essa gradação negativa ocorra na maioria dos casos. Muitas vezes, o simples registro de B.O., que é um encontro aqui na delegacia quando o agressor é notificado a comparecer antes mesmo da representação criminal, já inibe a reiteração daquela prática dentro de casa. É muito recorrente ouvir isso das vítimas e esse é um caráter muito positivo da lei que conseguimos observar”, afirma. 

Delegada Anamelka Cadena destaca o empoderamento das mulheres em denunciar (Foto: Moura Alves; O Dia)

No âmbito do Piauí, a delegada cita as políticas públicas que estão sendo criadas para combater os crimes de violência doméstica e familiar contra as mulheres, sobretudo com a criação do Núcleo de Feminicídio, único no Brasil especializado na investigação de morte violenta de mulheres em razão do gênero. Outro exemplo relatado por Anamelka Albuquerque é a criação do Plantão de Gênero, que irá fazer todas as autuações em flagrantes referentes à questão de gênero, tratando-se da Lei Maria da Penha ou não. 

Entretanto, a delegada acrescenta que é preciso intensificar ainda mais a divulgação da lei, sobretudo para evitar as subnotificações, em especial de violência sexual. Segundo ela, há muitos casos em que as vítimas vão à delegacia, narram as violências que sofreram em casa, mas sucumbem a sexual, exatamente porque as vítimas não conseguem romper essa barreira do silêncio e essa agressão acaba ficando impune.

Lei abrange esferas não previstas no Código Penal 

As mulheres estão quebrando o silêncio e rompendo as barreiras da violência, denunciando as agressões sofridas pelos companheiros e buscando justiça. Esse crime ganhou visibilidade e punições severas para quem os comete. Órgãos de defesa e proteção foram criados, assim como delegacias especializadas e investigações mais rígidas. Estes são alguns dos avanços conseguidos através da Lei Maria da Penha, que completa dez anos em 2016, mas que ainda necessita de mais melhorias. 

Segundo dados divulgados pela ActionAid, cinco mulheres são mortas a cada hora no mundo por conta da violência doméstica. A pesquisa ainda prevê que, até 2030, mais de 500 mil mulheres serão mortas por seus parceiros ou familiares. No Brasil, 38.019 denúncias de violência contra a mulher foram recebidas pelo Ligue 180, de janeiro a março deste ano. 46% foram de violência física; 25% de violência psicológica. Em 2015, 72% dos casos denunciados foram cometidos por atuais ou ex-companheiros, cônjuges, namorados ou amantes. 

A delegada e diretora de Gestão Interna da Secretaria de Estado da Segurança Pública do Piauí, Eugênia Villa, enfatiza que a Lei Maria da Penha possui uma excelente estratégia de proteção à mulher e que a lei veio para abranger esferas de violência que não estavam compreendidas no Código Penal, como a violência psíquica, estupro marital, estupro de correção em mulheres lésbicas, entre outros, além do feminicídio. 

Contudo, ela destaca que ainda é preciso fazer uma avaliação das ações que estão sendo executadas, no sentido de potencializar a aplicabilidade efetiva da lei no âmbito doméstico, sobretudo descontruir a cultura do machismo. Uma dessas ações está na modificação da linguagem policial que, segundo ela, é totalmente contrária à metodologia investigatória na perspectiva de gênero. 

“No laudo de estupro, as requisições são feitas levando em consideração quesitos se a paciente era virgem e se o desvirginamento é recente. O mesmo ocorre quando uma paciente é estuprada e o médico deve constatar se houve estupro ou não. Ele não tem status para dizer se foi ou não foi, porque o estupro é um elemento jurídico”, disse Eugênia Villa. 

Lei precisa avançar e humanizar profissionais, avalia promotor Francisco de Jesus 

Segundo dados do Núcleo de Promotoria de Justiça de Defesa da Mulher Vítima de Violência Doméstica e Familiar (Nupevid), em 2007, foram registradas 1.200 denúncias de violência contra a mulher. No ano seguinte, foram registados três mil casos. Atualmente, há mais de 10 mil casos registrados de violência contra a mulher em Teresina, segundo o promotor Francisco de Jesus. Para ele, esse aumento dos casos reflete, não que houve um aumento no número de agressões, mas sim que essas vítimas estão se encorajando a denunciar as agressões que vêm sofrendo por seus companheiros. 

Porém, estes números poderiam ser ainda maiores se os órgãos oferecessem um atendimento humanizado às vítimas. De acordo com o promotor, muitas mulheres denunciam que não são bem recebidas em algumas entidades de Teresina e chegam a ser revitimizadas, inclusive dentro do próprio poder judiciário e no Juizado da Mulher. Francisco de Jesus ainda destaca que o Juizado recebe o maior número de processos; porém, cerca de 40% dos casos denunciados são prescritos, e isso acontece porque não são julgados em tempo hábil. 

“Existem vários fatores, como a inércia do sistema, falta de estrutura e falta de capacitação e humanização dos agentes que lá atuam, que deveriam dar celeridade nesses processos. Se queremos que ela saia do armário e denuncie, temos que dar a ela uma resposta”, pondera Francisco de Jesus. 

A promotora Amparo Paz, também do Nupevid, acrescenta que a Lei Maria da Penha não foi suficiente para eliminar a violência, mas foi responsável por dar visibilidade a um problema que só dizia respeito ao âmbito privado das pessoas. “Dizia-se sempre que, em briga de marido e mulher, não se metia a colher. Mas agora, esse assunto é discutido, inclusive a desigualdade de gênero e isso é um avanço e foi uma conquista da lei. Conseguimos conscientizar as mulheres para que elas denunciem seus agressores e essas denúncias evitam que progrida de uma lesão corporal ou ameaça e chegue a um feminicídio”, pontua. 

Os promotores destacam que ainda é necessário avançar em alguns quesitos, sobretudo na expansão para outros municípios no interior do Piauí, que não oferecem atendimento especializado às mulheres vítimas de violência. Amparo Paz cita que é preciso melhorar também na capacitação e sensibilização dos operadores do sistema de Segurança e Justiça, bem como na Saúde, para que eles possam oferecer um atendimento mais humanizado a essa mulher e não revitimizá-la. E enfatiza que existe uma lei federal e estadual obrigando os hospitais da rede pública ou particular a informem às autoridades se uma mulher der entrada na unidade vítima desse tipo de violência; porém, é muito difícil isso acontecer. 

Nupevid 

Há quatro anos, o Núcleo de Promotoria de Justiça de Defesa da Mulher Vítima de Violência Doméstica e Familiar (Nupevid) atua na defesa e proteção da mulher. Além disso, desenvolve trabalhos voltados tanto para a prevenção, como o projeto Maria da Penha nas escolas e o laboratório Maria da Penha, como para a reeducação, através do projeto Reeducar, que será lançado no final deste mês, voltado para homens que praticaram crimes contra mulheres. 

Para o promotor Francisco de Jesus, o maior avanço conseguido pela Lei Maria da Penha foi demonstrar, para a sociedade, que a violência contra a mulher existe e é uma realidade diária. Ele pontua ainda que o sistema de Justiça passou a se preocupar mais com essa violência, além de incentivar a criação de órgãos especiais, no sentido de dar proteção a essa mulher, como o Ministério Público, Juizados Especiais, equipes multidisciplinares em cada um desses espaços, entre outros.

Por: Isabela Lopes
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