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Quero que deixem minha filha ter seu lugar, diz mãe de criança trans

Para crianças transexuais, o sentimento de pertencer ao sexo oposto é presente desde os primeiros momentos e não tem relação com a orientação sexual

27/09/2015 09:30

Ela corre pela casa como quem não tem tempo a perder. O sorriso banguela que entrega ao mínimo sinal de presença não deixa negar: Thaís* é uma criança feliz. Em casa, com a mãe, irmãs, avó e tias, ela é radiante de alegria e sabe que pode ser quem é. Mas, da porta para fora, as barreiras são maiores do que ainda é capaz de entender. Thaís, aos 5 anos, é uma criança transexual que, desde os primeiros anos, não se reconhece com o gênero masculino com o qual nasceu. Para a mãe, após travar batalhas individuais e sociais, agora, o maior desejo é fazer com que as pessoas respeitem e aceitem sua filha, que “deixem ela ter seu lugar no mundo”, destaca. 

O que a sociedade tem dificuldade de entender, não foi fácil nem mesmo para Eduarda* que, após ser mãe de duas filhas, uma de 14 e outra de 7 anos, o nascimento do filho mais novo veio para provar que o amor é capaz de aceitar o que era, até então, desconhecido. “Eu busquei orientação e informação, mas não foi fácil. Muita gente julga como se eu fosse uma mãe permissiva, que, por isso, isto acontece, mas as pessoas não entendem que a Thaís sempre foi assim. Desde os 2 anos, dizia que era menina e até maltratava muito seu órgão genital, ela não queria”, comenta Eduarda. 

Foto: Jailson Soares/O DIA

O que a pequena Thaís mostrava desde cedo veio se intensificando com o tempo. Aos 3 anos, já não queria mais roupas masculinas ou ser tratada como ‘ele’. O nome feminino por qual atende atualmente foi escolhido por ela mesma, após inúmeros pedidos que não fosse tratada como menino. Foi quando Eduarda decidiu. Entre estar ao lado da filha ou escutar os julgamentos tortos da sociedade, ela optou pela primeira. 

Para crianças transexuais, o sentimento de pertencer ao sexo oposto é presente desde os primeiros momentos e isto não tem nenhuma relação com a orientação sexual, já que o desejo de agir de acordo com o outro sexo, nesta fase, não significa atração sexual. “A verdade é que todo mundo percebia que ela era diferente, gostava de brincar com as coisas das irmãs, que era delicada, mas ninguém aceitava. Mas, ano passado, decidi que deixaria minha filha ser quem é, e vi a felicidade dela após poder vestir as próprias roupas de menina”, lembra. 

*Nomes fictícios para preservar a identidade das fontes

“Nós vamos fazer dar certo”

Com a iniciativa, a mãe se mobilizou para que a família, escola e todos os setores que fazem parte da vida da filha entendessem o que acontecia. Na escola, com esclarecimento para diretores e professores, a pequena Thaís, agora, pode usar o banheiro feminino. No entanto, de acordo com a mãe, há um longo caminho a ser percorrido. 

“A maioria das pessoas próximas já compreendeu e aceitou, mas é uma coisa complicada para os outros, porque eles acham que uma criança não tem entendimento para escolher o que ela quer ser. É aquela questão de ‘criança não tem querer’. Mas isso não funciona assim. Na escola, tenho que fazer uma fiscalização quase que diária para saber se minha filha está sendo respeitada, porque os professores entendem, mas têm os funcionários que não entendem, os pais dos coleguinhas que não entendem. As crianças não têm problema, brincam como todo mundo, mas as pessoas não sabem lidar. Eu sempre estou disposta a conversar, levo livro, documentários, mas sei que nem todo mundo está disposto. Existem muitas festinhas, aniversários, que minha filha não é convidada para ir”, conta Eduarda. 

Apesar do apoio da mãe, a família paterna é ausente. Logo após saber da decisão da mãe em aceitar que o filho se vestisse como menina e assumisse seu desejo em ser tratado como tal, o pai da criança e a família cortaram os vínculos de relacionamento. A família paterna ainda chegou a abrir um processo de maus tratos no Conselho Tutelar por conta da criação de Eduarda. 

A ação não foi para frente, já que ficou claro para os conselheiros, após entrevistas e investigações, não se tratar de caso de abuso ou maus tratos. “Saí do Conselho Tutelar com eles me dizendo que, se eu soubesse de outros casos de crianças transexuais que estivesse sendo perseguidas por isso, que eu indicasse, porque isso é homofobia”, relembra. 

“Não vou cansar de tentar deixar ela ter seu lugar no mundo, porque ela virou a criança invisível. Ninguém chama para passear, para brincar. Minha filha parou de existir enquanto criança e virou só a transexual. Eu sei que é complicado para as pessoas entenderem, mas, quando se tem amor, a gente faz um esforço. Quero que ela se desenvolva com todo potencial que tem e que seja feliz como é”, as lágrimas que caem dos olhos de Eduarda enquanto ela afirma a incansável luta pelo bem-estar da filha são traduzidas em uma última frase assertiva: “nós vamos fazer dar certo”.


* Para proteger a identidade das fontes, os nomes usados são fictícios.

Por: Glenda Uchôa - Jornal O DIA
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