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O dilema da pichação: arte, manifestação legítima ou vandalismo?

Pichadores geram discussão ao ocupar espaços públicos e assaltar a comunidade com uma mensagem forte e impossível de ser ignorada.

16/10/2016 10:08

Teresina tem visto suas paredes serem ocupadas, cada dia mais, por diversas formas de intervenção. Os conhecidos “pixos” estão se espalhando ainda mais, tomando novas formas e ocupando espaços do Centro à periferia, da calçada ao telhado.

Pichação é usada para protestar contra corruptos (Foto: Moura Alves / O DIA)

O pixo gera controvérsia desde a grafa da palavra: “com X ou CH?”. Esta já é uma questão polêmica, que é exatamente a intenção dos pichadores: gerar discussão, ocupar espaços públicos, assaltar a comunidade com uma mensagem forte e impossível de ser ignorada. 

A pichação está em alta, tanto nos tradicionais xarpis (que são as assinaturas de cada pichador) como em frases poéticas, questionadoras ou textos de cunho político. Quem não tem voz na sociedade grita através da tinta spray e, nas palavras do professor de arte, Francisco das Chagas, “a parede não só ouve, mas passa também a falar, a gritar”.

Pixo dá voz às parcelas mais humildes e discriminadas da sociedade, permitindo que elas protestem contra corruptos e opressores (Foto: Moura Alves / O DIA)

O professor Francisco das Chagas é mestre em artes visuais e tem pesquisas em estética e ética da arte. Porém para ele, o pixo sequer precisa do status de arte para ser uma forma de comunicação legítima. “O pixo, que é uma forma de intervenção, não necessariamente precisa ser chamado de arte. Porque no momento em que colocamos ele dentro de uma categoria, ele passa a ser previsível, a estar dentro de determinadas normas”, opina.

“A gente vê em algumas das paredes da Ufpi, por exemplo, intervenções onde os estudantes cobram promessas que foram feitas a eles e não foram cumpridas. Por exemplo: ‘Cadê a creche que foi prometida e não foi feita?’, ou ‘Pague os terceirizados’, porque existem terceirizados vivendo numa situação de escravidão dentro da universidade e ninguém toma uma providência. Então, são questões que estão no contexto em que eles vivem”, completa.

Comunicação anônima e imperativa

O professor Francisco das Chagas argumenta que a intervenção se torna uma forma de comunicação, anônima e imperativa, onde o pixo está para a escrita da mesma forma que o grito está para a fala. “A parede vira um espaço de encontro. A parede não só ouve, mas passa também a falar, a gritar. Existem ali diferentes narrativas, em vez de ter uma pintura branca, onde não existe um sujeito imediato, aparente”, explica.

A poesia também está presente no pixo (Foto: Divulgação)

A definição do pichador como um vândalo, para o professor Francisco, não é ética. Ele argumenta que há locais que não são pixados, como por exemplo árvores e quadros informativos. Assim, o pixo não é uma ação deliberada ou puramente destrutiva. “São estudantes, artistas, é uma forma de criação e de expressão. E você vê diferentes tipos de expressão. Poesias, pixos de cunho político, colagens... é um processo criativo maravilhoso!”, defende.

Pichação vive dilema. Embora seja vista como manifestação legítima de protesto ou de arte por parte da população, muitos consideram prática um ato de vandalismo (Foto: Arquivo pessoal)

Entretanto, o pixo incomoda a sociedade. São feitos sem permissão e nem sempre são legíveis pelas pessoas que não estão inseridas no contexto da pichação. A atividade é tipificada como crime ambiental e contra o patrimônio público e é passível de três meses a um ano de prisão. Alguns locais onde há grande incidência de pixos, como em universidades, já tentaram delimitar um local liberado para pichações, mas a iniciativa geralmente é infrutífera: todos os outros espaços terminam pixados, com exceção do espaço separado. 

“Seria o mesmo que dizer para pessoas que estão presas: ‘olha, tal hora do dia vocês vão poder gritar pela liberdade’”, brinca o professor Francisco. “Não é delimitando um espaço que você vai normatizar o picho. Ele parte de um questionamento interno sobre a sociedade e isso é uma coisa viva, que não se cristaliza, não deve sequer ser colocado numa normatividade porque ele perde a função de contestar, de inovação. Se se tornar previsível, ele deixa de ser questionador, de apresentar o novo”, pondera.


Pixos estão espalhados por muros em todas as regiões da cidade (Fotos: Moura Alves / O DIA)

Espírito Vândalo 

Os pichadores se organizam em crews (grupos, em inglês), geralmente identificadas por uma sigla e que têm símbolos próprios. As crews disputam entre si os espaços da cidade, e quanto mais difícil for o acesso a alguma “tela” (parede em branco), melhor. 

Conversamos com os membros da crew “Espírito Vândalo”. Huku, Badu e Lgero pediram que as identidades que usam nas ruas fossem suas identificações nesta reportagem. Procuramos, através deles, entender o que faz o jovem sair pelas ruas da cidade com uma lata de tinta spray. 

Os xarpis de Huku, Badu e Lgero. (Foto: Andrê Nascimento/ O Dia)

 “Eu acho que é uma necessidade do ser humano. Quem nunca riscou a carteira escolar? É mesmo do ser humano, desde a era primitiva”, argumenta Lgero. “E eu acho que o pixo é a arte de que não tem condição de ver um quadro, tipo Monalisa. Começa por ali, riscando, se identificando na cidade, mostrando você, mostrando que você existe”. 

Huku afirma que foi motivado a começar pela história da pichação. “O pixo vem da década de 80, e está rolando até aqui em 2016. Então o cara vai querer entrar também nessa história”, disse. Ele comenta que cada pichador tem uma relação especial com o seu xarpi, a marca que imprime na cidade. “Tem cara que cria, coloca nome, tem como se fosse um animal de estimação. Só que é uma marca dele, é tipo um orgulho, é pessoal”. 

Já Badu fala dos sentimentos que correm no sangue na hora de pixar: a adrenalina e a euforia de enfrentar a autoridade da parede branca. Para ele, o xarpi diz muito sobre a personalidade de cada pichador. “Para mim aquilo está dizendo tudo sobre a personalidade da pessoa, tá mostrando quem a pessoa é de verdade, o que ela é capaz de fazer”. 

 Algo difícil de entender para quem se incomoda é a relação com o proibido. Para eles, a arte não está apenas no que fica na parede: o desafio e o risco são parte essencial da atividade e determinantes na criação dos xarpis. 

 Para Huku, pixar um muro com a permissão do dono não faz sentido. “Para mim não tem graça se o cara liberar o muro. Eu não vou querer pixar ali. Por que para mim o que vale é na hora de fazer, de sentir. O cara sente a pressão. O cara sente a adrenalina e passa todinha para o spray.”, disse. 

(Foto: Andrê Nascimento/ O Dia)

 Lgero explica que a intenção do pixo não é embelezar, como é o caso do grafite, mas transgredir e desafiar. “O grafite é liberado, mas é diferente. O grafite não vai estar indo contra aquela parede estar proibida.” 

 A proibição do pixo coloca os pichadores em uma situação de ilegalidade, e em rota de colisão com a Polícia. Eles não falam abertamente que são pichadores, apenas entre amigos próximos e pessoas que entendam sua postura. Lgero fala da ocasião em que foi detido por conta de um pixo. “Fui xingado de marginal, de vagabundo, diziam que a gente tem que trabalhar...” relata. “E você não tem como debater com uma pessoa dessas, né”, comenta Badu. “Não tem a liberdade de trocar uma ideia com o policial, por que ele pode usar da força para te calar. Então tem que escutar esse tipo de ofensas, sendo que eles não sabem nada com relação a isso. Te julgam pela superfície”.

Irmandade 

 A pichação em Teresina nasceu nas zonas periféricas na década de 80, marcado pela insatisfação. Com o tempo, grupos se formaram, com a ocorrência de casos de violência quando, por exemplo, um pichador riscava por cima do trabalho de outro. 

Na era digital a comunicação entre as crews foi facilitada. Os membros do “Espírito Vândalo” garantem que essa realidade ficou no passado. Segundo Lgero, hoje existem muitos grupos, e que abrem espaço para a conversa. “Desde que eu to na pichação eu nunca vi essa violência”, afirma, ao que Huku completa “Tem muro para todo mundo em Teresina”, e sorri.

Mulheres deixam marcas da própria história 

A expressão, por si só, já é impactante: devastação feminina. Este é o nome pelo qual é conhecido o grupo de mulheres artistas que, juntas, intervêm nos muros de Teresina. Entre as várias formas de deixar registros na cidade, em comum com o nome de impacto do grupo, o tipo de intervenção que fazem: o pixo. 

“O grupo foi criado para o fortalecimento das mulheres artistas urbanas”, explica a artista visual e integrante da Devastação Feminina, Lise Mariane. São de autoria dela palavras e frases comumente encontradas em Teresina, como, por exemplo, "ou é amor, ou doença grave", "o sensual é visível aos olhos", "Godard", "leviana". 

Espalhadas por áreas centrais ou periféricas, as expressões fazem parte de um mesmo contexto de intervenção. Como explica, tudo parte de um propósito. “Uso as ruas como páginas, como se fosse uma linha temporal da minha vida, faço frases ou palavras chaves. Cada palavra e frase representa um momento, gosto de fazer meus trabalhos na rua, não tem curador, não tem facebook, a mensagem é passada de forma democrática e direta para quem estiver na rua”, esclarece. 

A liberdade é a grande válvula propulsora desse tipo de atuação artística. No caso de Lise, com intervenção grafada em letras cursivas, além de contar um pouco da própria história, seus pixos também funcionam como interven- ção política e poética. 

A artista lembra da morte da travesti Makelly Castro, em 2014, período em que começou a deixar pelas ruas da cidade a frase “Travesti também é gente”. “Têm diversos artigos na internet que afirmam que o pixo é uma das coisas mais potentes da arte contemporânea; enfm, eu pixo com intenção de mudar o dia de uma pessoa, de passar uma mensagem, se eu conseguir desconstruir alguém, é lucro”, destaca Lise. 

Leia a íntegra desta reportagem especial na edição deste domingo do jornal O DIA.


Fonte: Jornal O DIA
Por: Andrê Nascimento e Glenda Uchôa
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