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'Naquela hora eu parei, e senti nojo de mim', diz acusado de estupro

ENTREVISTA: apesar de negar as acusações feitas pela própria mulher e pelos seus filhos, detento ouvido pela reportagem de ODIA relata violência sexual, mas alega ter sido com consentimento.

28/08/2016 08:35

Em 2016, o Piauí e o Brasil se chocaram diversas vezes com casos bárbaros de violência sexual. Esse tipo específico de crime se tornou o centro da discussão sobre machismo e violência doméstica. Para trabalhar o tema sob uma nova perspectiva, procuramos, desta vez, ouvir um acusado pelo crime de estupro. A pedido da Secretaria de Justiça do Piauí, que aceitou nos ajudar, a diretoria da Penitenciária Irmão Guido procurou um voluntário, dentre os presos pelo artigo 215, que aceitasse fazer uma entrevista. 

Recebemos uma resposta positiva, e me desloquei até o lugar para encontrar o senhor Carlos Henrique, que terá seu nome substituído por um fictício, para que possamos conservar os envolvidos. 

Meu primeiro contato com o senhor Carlos Henrique aconteceu na sala da diretoria da penitenciária Irmão Guido, ao ler o depoimento de sua ex-esposa. Ela o acusava de abusar sexualmente dos próprios filhos, cinco crianças com idades entre 6 e 16 anos, no depoimento de uma lauda transcrito pelo escrivão. A filha mais velha havia sofrido abusos desde a infância até o fim da adolescência, quando decidiu sair de casa. 

A esposa apanhava quando reclamava dos abusos, e vivia em cárcere privado, proibida de trabalhar, encontrar amigos, conversar com vizinhos. É uma mulher jovem, entre 26 e 28 anos. As outras crianças também sofriam abusos, inclusive o mais novo, um menino. Além das agressões, o acusado, segundo o depoimento, usava um taser - arma de choque não-letal usada por policiais para imobilização - para ameaçar a família. 

Haviam fotos da carteira de identidade de Carlos Henrique anexadas ao processo. Mostravam uma versão jovem, algo em torno dos 30, magro e altivo com um fino bigode que escorria pelos cantos da boca. 

Cheguei no local sem qualquer informação do entrevistado que iria encontrar, e esperava lidar com um caso pesado, mas confesso que subestimei as possibilidades. Li o depoimento o mais rápido que pude, e um agente penitenciário abriu a porta da sala me chamando. O segui por um corredor verde e branco. Haviam oito detentos ali, quatro de cada lado, as mãos algemadas nas costas e as testas coladas à parede. Homens altos e magros, de pele negra e pescoço comprido. Eram recém chegados, e esperavam para serem atendidos na sala da direção. Sabia que não fariam algo comigo naquela situação, mas a cena gera calafrios. 

Foto: Andrê Nascimento/ODIA

Meu segundo contato com o senhor Carlos Henrique ocorreu poucos minutos depois, numa sala vazia. Estava sentado, e em nada lembrava o homem da foto do RG. Não há mais bigodes, os cabelos são brancos e ralos. Está gordo, faltam-lhe muitos dentes, substituídos por uma dentadura que se move com os lábios. Tem cicatrizes longas nos dois cantos da boca, que correm pelo mesmo caminho que os antigos bigodes. A altivez foi substituída por desconfiança. Me apresentei e apertei sua mão. Sentei diante dele e fomos deixados a sós, na pequena salinha ocupada por um enxame de mosquitos. Comecei comentando que estava ali para entrevistar um estuprador. Ele disse que de fato foi chamado como tal. “Eu até disse que não tinha nada a temer, por quê não fiz como dizem, como está escrito. Não estuprei ninguém”. 

Carlos contou sua história, pesaroso e cheio de voltas. Não falava numa linha reta, mas o deixei falar. Começou relatando os esforços que fez como pai, quando foi abandonado pela esposa. Ela o deixou sozinho com as crianças por anos, que segundo ele sofreram pela falta do pai, que tinha que trabalhar e cuidar delas. Contou que, nesse tempo, teve várias outras mulheres, mas que os relacionamentos terminavam quando elas maltratavam seus filhos. “Toda vez que ouvia que faziam alguma coisa eu as deixava. Então essas mulheres foram indo embora, sem que eu as espancasse”, comentou, como que a demonstrar um sinal de benevolência. 

Carlos falava com uma voz suave, clemente. Me tratou com a mais absoluta educação, me chamando de amigo e “meu caro repórter”. Em certo momento, me chamou de colega, e logo pediu desculpas. “Aqui, se chamar de colega vai até preso, porque pensam que estou chamando de estuprador”, disse, se referindo aos agentes penitenciários. 

Por diversas vezes, comentou que esperava a chegada de um anjo para salvá-lo, e insinuou discretamente que eu poderia ajudá-lo se quisesse. Disse que era evangélico, e falou em Deus em todas as oportunidades possíveis. 

Em outros momentos me olhava nos olhos com firmeza. Franzia o cenho e os olhos duros me encaravam direto. Mesmo que estivesse falando de forma calma, ou mesmo se defendendo, haviam estes momentos. Era ameaçador sem querer. Carlos tem olhos claros e sobrancelhas ralas.

Depoimento de filha incriminou acusado 

A filha mais velha de senhor Carlos é parte importante nos depoimentos que o incriminam. Foi dela a decisão de denunciar os abusos, após conseguir furar o cordão de isolamento em volta da família. De acordo com o texto do processo, a menina casou-se aos 16 anos para escapar das agressões do pai, por quem era abusada desde os oito anos de idade. Segundo o senhor Carlos ela teria ido em uma viagem para Brasília, para visitar a mãe biológica. Apesar de alegar inocência, ele relata que ela, ao voltar da viagem, em fevereiro deste ano, lhe falou: “Pai, eu vim pronta para lhe denunciar. Eu já lhe perdoei, mas faz pena você estar preparando essas duas [filhas mais novas] para fazer a mesma coisa”. 

Ele nega. Argumenta que as acusações da filha são fruto de raiva por ele ter frustrado um relacionamento da menina com um homem mais velho. Na época, ela teria 12 ou 13 anos, e segundo ele, fugia da escola para se encontrar com o “amante”. Conta que, junto com mais dois amigos, encurralou o homem e o ameaçou. “Ele ficou chorando, pedindo perdão, que era um erro dele, aquela coisa toda. Os meninos ficaram tomando dinheiro dele, e ela ficou dizendo que era eu que estava fazendo isso. Aí ele ficou com medo de morrer, dos meninos darem um fim nele, e foi para o sul do estado. Foi embora”. 

Além disso, conta que em outra situação, ao suspeitar que a filha estaria tendo relações com um rapaz, a levou para a DPCA (Delegacia de Proteção a Criança e Adolescente) para fazer exames de virgindade. À médica, a menina teria dito que perdera a virgindade com um ex-namorado. 

“Eu disse assim: quando a gente pega, que mata, doutora, a gente é ruim”. A médica teria tentado dissuadi-lo, aconselhando a conversar com a menina, a ter paciência para que a menina “não caísse na prostituição”. “Ela tentou me dar conselho para que eu não a maltratasse. A vontade minha era de bater até sair sangue, aquela raiva momentânea”.

Carlos culpa a filha e o amante mais velho

Apesar de tentar se manter inocente dentro do seu relato, Carlos deixa escapar episódios e comentários violentos. Mesmo sem ser perguntado, fala de situações que destoam da imagem de homem calmo e pai dedicado que busca imprimir. Em toda sua história, coloca a culpa numa dita promiscuidade, que ele enxerga na filha, na imprecisão da justiça e até no diabo. 

Em certo momento falou de um dia em que, num bar, um amigo teria lhe mostrado pelo celular um vídeo em que um casal transava de forma violenta, com o homem batendo e judiando a mulher. Diz que um demônio se apossou dele, e que ao chegar em casa quis fazer o mesmo com a esposa. “Umas três vezes eu fiz a besteira de transar daquela forma, sabe, mas sempre eu pedia a ela. Nunca fui chegando e batendo. Adulava era muito até que ela aceitava”. 

Carlos conta que amarrava a esposa na grade da janela do quarto, e que na terceira vez ela reclamou das agressões. “Naquela hora eu parei, e senti nojo de mim. Ela pensa que eu tô fazendo é com raiva? Prometi a mim que não fazia mais daquele jeito, mas continuei fazendo, quase idêntico. Não do mesmo tipo”. Ele conta que parou quando ela lhe disse: “Se você pensa que fazendo isso você faz eu te amar, você faz é eu te odiar”. 

“Eu fiquei com tanto nojo daquele vídeo, mas só depois. Na hora a gente não vê. O Diabo entra na mente das pessoas, amigo, e deixa a gente... Só depois a gente vê o erro que está cometendo. E parece que o Diabo está ali todo tempo, lhe metendo fogo para que aquilo aconteça”, argumentou senhor Carlos Henrique, com a voz embargada. Diz que esses episódios motivaram a esposa a denunciá -lo junto com a filha. Denúncias que, para ele, não fazem sentido. Ele culpa a menina por fazer a cabeça da mãe contra ele, e ainda o amante mais velho, que foi ameaçado por ele e dois amigos, de fazer a cabeça da filha.

Vida atrás das grades 

Depois de ouvir sua história, pergunto para ele como está sua vida desde que foi preso. “Meu caro repórter, lhe falo com toda a sinceridade: elas me botaram no inferno em vida”. Carlos Henrique se emocionou em alguns momentos da entrevista, mas chorou copiosamente nas vezes em que falou sobre a vida na cadeia. 

Ele explica que dentro das cadeias, os detentos são considerados de acordo com seus crimes. Assaltantes de banco, assassinos e traficantes, por exemplo, são respeitados dentro dos pavilhões. Já o acusado de estupro é discriminado. Hoje, Carlos vive na Penitenciária Irmão Guido, na saída Sul de Teresina, em um pavilhão especial para presos que não podem ser colocados junto aos outros. Com ele, estão outros acusados de estupro, feminicídio, homens marcados para morrer. Lá, eles não se agridem. 

Quando foi preso, Carlos foi colocado no pavilhão B da Casa de Custódia, junto com presos comuns. Ele conta que sofreu diversos atentados enquanto estava trancado na cela com outros 12 presos. 

“Passei seis dias no B, e era pressionado dia e noite. Diziam que iam meter espeto, que iam me furar. Eu não dormia, era o tempo todo no medicamento. Eles ficavam com espeto e corda, dizendo que iam me enforcar. Mandavam eu escolher entre a corda e o espeto, que eu podia me enforcar ou eles me matarem”, Carlos relata. “E quando a gente apanha, eles dizem que se a gente disser que apanhou vai pegar mais. As vezes chega um agente penitenciário e pergunta ‘Você ta sendo maltratado?’, e aí tem que dizer que não. ‘Você ta sendo pressionado?’, ‘não’, ‘Tem ferro na cela?’ ‘Não’”. 

Os espetos que Carlos relata são vergalhões que os presos arrancam das paredes do presídio e amolam no chão para virarem armas. “Eles guardam no sanitário, dentro dos colchões. Tiram de madrugada e começam a passar na gente. Dizem ‘olhaí cara, o que a gente vai enfiar em ti’. E qualquer hora ele pode enfiar mesmo”. Ele conta que chegou a ver um outro preso, acusado pelo mesmo crime, ser estuprado pelos companheiros de cela. “Era para ele ser estuprado por uns 15. Mas quando chegou no quinto ele gritava muito e foi retirado da cela”. 

Depois de seis dias, Carlos foi reconhecido por um faxineiro do presídio, também detento, e este avisou aos agentes que ele não podia ficar lá. Então, foi enviado para o ginásio da Casa de Custódia, local hoje destinado aos presos especiais e aos que trabalham no local. Mesmo lá, passado alguns dias, passou a ser ameaçado pelos presos, e foi enviado para a triagem, local onde não há nenhum outro preso. "Com 15 dias em que eu estava lá eu perguntei para o vice-diretor, seu Reginaldo: ‘Eu vou poder voltar para o ginásio?’ ele disse ‘Rapaz, depois que sai assim, não volta mais não’”. Dias depois, foi transferido para a Irmão Guido.

Conselho Tutelar alerta: “São vários por semana”

Na sede do Conselho Tutelar, no bairro Vermelha, zona sul de Teresina, encontrei Rejane Braz e Maria do Carmo Lima, conselheiras da zona sul. Comento sobre a entrevista com Antônio, e elas lembram do caso sem esforço. Cuidadosas, pedem para que não falemos sobre o caso em si. Têm receio de que tocar no assunto possa trazer a tona as lembranças para as vítimas. Sento com as duas em uma salinha do Conselho que tem brinquedos e elementos infantis espalhados pelas prateleiras e paredes, um contraste com a agressividade dos casos que ali chegam diariamente. 

O Conselho Tutelar é a porta de entrada para esses casos chegarem ao conhecimento da Justiça. Lá acontece o primeiro acolhimento da denúncia, que é repassada para a polícia logo depois. Maria do Carmo é assistente social, e Rejane é pedagoga, mas o cargo não exige curso superior. Elas, entretanto, enaltecem a importância da formação para lidar com esse tipo de situações, pela necessidade de tato, técnica e humanização no trato com as vítimas e famílias. 

Maria do Carmo relata que em algumas situações os policiais não conseguem conversar com a criança. “Você precisa ter toda uma técnica. Na verdade, tinha que ter uma equipe lá na DPCA, né. Psicólogo, assistente social e pedagogo.”, explica. Segundo ela, a vítima, assustada, muitas vezes “trava” durante o depoimento. “Se você perguntar direto, ela trava e pronto. Acabou a conversa”. 

A situação de abuso gera muita vergonha e culpa para a vítima e para a família. Rejane relata que a vítima de estupro muitas vezes se sente culpada. “Tem muitos casos em que o abusador diz que foi seduzido por aquela criança, mas na verdade isso é um perfil de todos eles. É a forma que encontram de se justificar pelo crime. E o pior é que muitas vezes eles conseguem colocar isso na cabeça da vítima. E essa culpa ela carrega para o resto da vida”. 

A influência também podem alcançar as mães. Maria do Carmo comenta que algumas chegam a criar ciúmes das crianças “As vezes sentem ciúmes, dizem que ele tem uma proteção por ela, um chamego. Não são casos rotineiros, mas acontecem”. Rejane concorda, e acrescenta que os abusadores têm o acesso de confiança por parte da família. “Abusador é aquele em que a família mais confia”, afirma. 

As duas culpam a impunidade como causa dos casos recorrentes de abusos contra crianças. A pedagoga Maria do Carmo comenta casos em que os abusadores, depois de postos em liberdade, chegam a ficar provocando as famílias e as vítimas, passando perto da casa e zombando a distância, ameaçando cometer novos crimes. “Já ligaram para cá para dizer ‘O agressor fica passando aqui na porta da casa da minha filha, fazendo pouco da cara da família, por que fez o que fez e não foi preso’, e nós do Conselho não podemos fazer nada”, lamenta. 

A preocupação é presente em várias esferas da Assistência Social e da Segurança. Rejane me conta do desabafo de uma médica do Samvis ( ). “’Onde é que vai parar, com tantos casos? o que ta acontecendo?’, ela dizia. Sugeriu que a rede fizesse algo, por que no dia foram várias situações. Eu disse: ‘Doutora, eu acho que os abusadores não estão vendo punição. Passa pouco tempo, vão responder em liberdade, se for réu primário ainda tem várias vantagens... acho que isso está acontecendo”. 

O caso de Carlos Henrique não chegou a figurar nas páginas de jornais. Durante nossa conversa, as duas comentaram, sem dar detalhes, dezenas de casos semelhantes de abusos acontecendo dentro das casas e das famílias. O Conselho Tutelar se esforçam para que os abusos não sejam conhecidos pela mídia, para que as famílias não sofram novamente com o crime, com a lembrança das agressões. Segundo Rejane, “99% dos casos ficam aqui e não vai para o conhecimento da mídia. Nossa, se a gente fosse divulgar, são vários por semana” 

 Machismo pode gerar abusos 

Um psicólogo, que não quis se identificar, acredita que apesar de casos de abusos contra crianças partindo da figura paterna avô, não serem raros, o perfil de Antônio é atípico, por ele apresentar comportamento agressivo. “No caso do abuso que é coagido, que geralmente é quando as crianças são mais velhas, eles usam de violência velada, ameaças. Até por que ele tem que manter escondido”. 

Ele comenta que em muitos casos, são equipes do CRAS (Centro de Referência da Assistência Social) e PSF (Programa Saúde da Família) que percebem que existe alguma situação problemática, por estarem mais perto das famílias. “Às vezes a família está sobre uma ameaça tão forte que não tem coragem de denunciar.”. Para ele, os abusos nascem, em primeiro lugar, do machismo. “Vem dessa moral influenciada pelo machismo, de achar que é dono da mulher, e, por consequência, dono dos filhos. E é uma moral duvidosa”, comenta o psicólogo. 

A maioria dos abusadores são pessoas da família ou que têm acesso à casa. “Para a sociedade eles se apresentam acima de qualquer suspeita”, diz ele. 

Casos deixam sequelas 

 As agressões deixam marcas profundas nas vítimas. O trabalho do psicólogo procura reduzir os efeitos criados pelo trauma do abuso. O psicólogo ouvido pelo Jornal O Dia comentou que as consequências das agressões vão se solidificando com o tempo se a vítima não tiver um acompanhamento profissional. “Na maioria das vezes esses casos deixam sequelas, principalmente a curto e médio prazo. Altera o apetite, o sono, a criança se afasta do convívio social, pode ficar agressiva”. 

O psicólogo explica que, um dos sintomas que apontam para a ocorrência de um abuso sexual em crianças é o comportamento hipersexualizado. Segundo ele, o desenvolvimento sexual começa na infância, mas tem suas etapas, e tudo tem seu momento. “Quando a gente observa que uma criança apresenta muito comportamento masturbatório, ou querendo tocar as outras, a gente pede aos pais ou cuidadores para que fiquem de olho, por que alguma situação assim pode ter acontecido”. Misturados às lembranças violentas, essa característica pode, com o tempo, incorporar a agressividade, e em alguns casos, gerar novos crimes.

Edição: Biá Boakari
Por: Andrê Nascimento - O DIA
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