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ESPECIAL: Moradores de rua vivem sob a invisibilidade social em Teresina

Vida real. No olho da rua. Por trás da roupa maltrapilha, do preconceito e da invisibilidade social, existem histórias de pessoas que tentam sobreviver ao inóspito ambiente da rua

25/09/2016 10:39

Edilson desceu do mototáxi com um sorriso incontido. "A gente acerta depois, certo?", disse esperando a confirmação positiva do amigo com quem acabara de fazer uma corrida. "Claro", respondeu o mototaxista. A dívida foi entendida porque todo o dinheiro que tinha até pouco tempo atrás, no valor de R$ 80, Edilson utilizou para entregar a mãe do filho e garantir uma semana com as necessidades básicas do primogênito. Morador de rua há três anos, ele sabe, como ninguém, como é difícil conviver com faltas. "Meu filho acabou de me dizer que vai estudar para me tirar daqui. Isso me emociona. Eu só quero ver ele bem", confessa.

Fotos: Elias Fontenele/ODIA

O lugar que hoje ele chama de casa é uma pequena praça localizada nas proximidades do Cemitério São Judas Tadeu, na Avenida João XXIII, na zona Leste de Teresina. Ali, ele divide espaço para dormir, cozinhar e viver com outros três amigos - o Marcos, Tonho e Neném. Laços estabelecidos em um primeiro momento pela necessidade de firmar-se e ter segurança, mas, posteriormente, pela afinidade e solidariedade mútuas alimentadas pela amizade consolidada dia após dia. "Hoje somos uma família", explica.

Edilson foi parar nas ruas por não saber lidar com a dependência alcoólica. "A família julga muito a gente, é muita confusão; por isso, prefiro ficar aqui para não ficar dando trabalho para ninguém. Essa hoje é minha casa", esclarece. 

A renda que consegue atualmente é com a ocupação de flanelinha. O trabalho é sistematizado com os colegas, cada um se responsabiliza de olhar os carros estacionados nas proximidades, em diferentes horários, com turnos que começam cedo da manhã. Às 5h, todos estão de pé e se preparam para o dia tomando um café vendido nas proximidades. O restante da alimentação do dia é garantida ou pela doação de pessoas ou preparando algo na cozinha improvisada no chão da praça.

"Cada um tem seu tempo, mas, quando um de nós consegue juntar R$ 20, já dá espaço para o outro. Aqui todo mundo se respeita. E é com esse dinheiro que ajudo minha família, compro minha bebida, a comida, roupa, itens de limpeza. Tudo aqui a gente se ajuda", afirma.

A vida antes das ruas

Mas nem sempre foi assim. Antes lidar com o alcoolismo, Edilson morava em uma casa, era ajudante de pedreiro e chegou a trabalhar com carteira assinada em grandes construtoras de Teresina. 

Hoje, sem documentos, ele diz que já tentou, repetidas vezes, se reintegrar ao mercado de trabalho, mas sem a papelada, é ainda mais difícil. "Tem um rapaz ali que disse que, quando eu conseguir meus documentos, eu tenho emprego garantido. Eu quero sair da rua. Ainda sonho com o dia que tudo vai dar certo", comenta.

Enquanto não consegue se restabelecer, ele diz não se esmorecer com a realidade da vida, que considera dura, mas digna. Trabalho, comida, um lugar para dormir. Edilson não precisa de muito, mas ele tem lutado por muito mais. "Um dia var dar certo", define esperançoso.

Igor e Raimunda: Visibilidade para violência, invisibilidade para sociedade

Há três anos, Igor e Raimunda são companheiros de vida. Juntos, eles enfrentam a dura realidade de morar na rua, lidando com o preconceito e a exposição de forma ainda mais intensa à violência urbana. O casal já foi roubado repetidas vezes, mas afirma que, por falta de outras opções, a rua continua sendo a única escolha para continuar levando a vida.

"Morava em Timon com minha família, mas as coisas foram ficando difíceis e eu resolvi sair de casa. Trabalhava como engraxate, fazia bicos, aí fui ficando na rua", explica Igor, que afirma já fazer 15 anos que convive com a realidade das ruas de Teresina. Hoje, ele tem 33 anos.

A história de Raimunda também é similar. Após perder o emprego de doméstica, ela ficou sem renda para se sustentar em uma casa. A rua foi escolha e fuga ao mesmo tempo. Mas desde que conheceu Igor, a escolha de vida solitária e arriscada ganhou ares de companheirismo e afeto.

O dia a dia do casal é envolvo na busca de alimentação e realização de pequenos bicos. Para quem não tem renda fixa, nem sempre é possível garantir as refeições básicas do dia. Era 17h, de um dia de semana, por exemplo, quando Igor afirmou não saber se conseguiriam jantar. 

Para ele, a atitude de outros moradores de rua fez com que grupos, que antes se organizavam de forma voluntária para dar alimentação às pessoas que compartilhavam da sua mesma situação, ficassem cada vez mais escassos.

"Antes, tinha um pessoal que sempre vinha dar janta aqui 'pra nois', mas aí tinha um pessoal que ficava deixando resto de comida espalhado, não comia. Aí o povo deixou de vir. Isso só prejudica a gente, que faz tudo direitinho", desabafa.

Quando falta dinheiro e doações voluntárias, a maneira encontrada é pedir por comida de porta em porta. "Têm umas pessoas que são muito bondosas e ajeitam a gente. Mas tem dia que não dá mesmo", relata.

Insegurança

Além das dificuldades para garantir a alimentação, o casal também passa pela insegurança de morar ao relento. Atualmente, com uma pequena estrutura de cozinha improvisada, local para dormir e onde lavar e estender roupas, o casal fica na praça ao lado do Parque da Cidadania. 

Do último furto que foram alvos, eles perderam a rede onde dormiam e algumas peças de roupas. Por isso, hoje, o papelão é a única opção para descansar depois de um dia de andanças. "Já roubaram muito a gente, é triste, porque você já não tem nada e ainda vêm as pessoas para tirar", lamenta.

Apesar de pouco esperançoso, Igor ainda afirma que batalha para conseguir sair da situação. Um emprego, para ele, seria o primeiro passo para reverter a realidade de vida da rua. 

Fernando: Dependência que leva ao crime

Debaixo da sombra de uma grande mangueira, localizada na Praça da Bandeira, Centro de Teresina, Fernando Cunha espera o tempo passar. O olhar de ressaca mostra que a falta de sono associada ao uso de drogas torna o dia ainda mais moroso. Ele admite: "Foi a dependência que me trouxe até aqui".

Desde 2006, o jovem, de 28 anos, mora na praça central de Teresina. Usuário de drogas, ele viu o vício tomar parte importante da sua vida. 

Ao abandonar a sua casa, na zona Sul de Teresina, que retoma em visitas com período de tempo muito espaçados, Fernando se entregou à realidade de lidar com o que é oferecido nas ruas.

Para ter renda, o jovem faz pequenos bicos e furtos. O dinheiro é para alimentação e compra de drogas. "A verdade é que a gente não tem oportunidade. Cadê o Governo, cadê o Estado para não deixar que muita gente viva assim. Não tem ninguém. Aí a gente leva a vida assim mesmo, não é fácil se livrar da droga", argumenta em um diálogo bem organizado.

Fernando tem um filho, que vê com pouca frequência por conta da sua atual situação. Sobre saudades, ele diz sentir, mas o vício atrapalha que o jovem retome um novo caminho. "A gente vai esquecendo as coisas. Esquece de muita coisa. Da gente, das pessoas. A droga faz isso", relata.

Entre as muitas tatuagens que se espalham pelo corpo, uma no ombro ganha destaque: Deus é fiel. Talvez por isso, apesar de relatar com um certo pesar e conformidade com a realidade que vive atualmente, ele ainda pensa em sair da vida das ruas.

"Só falta a oportunidade, se alguém me chamasse para capinar um lote, limpar o local, ter um emprego, eu queria. Eu já procurei, mas as pessoas não dão valor pra gente como eu", afirma.

Maria: Solidariedade como meio de vida

Maria tem a voz mansa e um jeito sereno de explicar sua vida. Mas o que conta não é nada fácil. Há 10 anos como andarilha, ela leva a vida baseada na solidariedade das pessoas. É com a ajuda de desconhecidos que ela garante alimentação, vestuário e formas de sobreviver diariamente. Atualmente, ela mora na Praça João Luís Ferreira, Centro de Teresina.

“Sou da Bahia e trabalhava como ascensorista, mas perdi o emprego. Continuei procurando, fazendo bicos, até não encontrar mais. Familiares foram falecendo e aí aconteceu de eu vir parar na rua”, descreve.

Ela está há dois meses no Piauí, mas já passou pela realidade das ruas dos estados de São Paulo e Maranhão. Por onde passou, procurou formas de se estabelecer longe das ruas, mas as dificuldades sempre a levavam para as praças.

Na Praça João Luís Ferreira, onde dorme, uma pilha de roupas e objetos fazem proteção entre ela e os transeuntes. Um colchão antigo é a cama de todos os dias e uma bíblia a companheira para os dias ruins. “Gosto de ler”, confessa.

O vocabulário amplo e boa articulação mostram que ela avançou nos estudos. Mas foi a falta de oportunidades uma das responsáveis pela vida de Maria ter tomado rumos tão instáveis. “Hoje me conformei com a vida assim. Muita gente me ajuda, pessoas que trazem comidas, roupas e vou levando”, explica.

Pela solidariedade cotidiana, ela demonstra uma fé enorme nas pessoas. Por isso, seu depoimento, apesar de difícil, é motivador. Maria mostra que há razões para acreditar no ser humano, por mais difíceis que as coisas possam parecer

Na almofada que leva consigo, uma frase que resume como ela enxerga a vida: “Não ame pela beleza, pois um dia ela acaba. Não ame por admiração, pois um dia você se decepciona. Ame apenas, pois o tempo nunca pode acabar com um amor sem explicação”.

Antônio: A rua como recomeço

Recomeços nem sempre são fáceis. Para Antônio Francisco, de 42 anos, o seu recomeço foi para, literalmente, reergue-se do zero. A casa onde hoje mora, no cruzamento da Avenida Miguel Rosa com a Rua Coelho de Resende, tem as paredes feitas de papelão, o telhado formado pela sombra de uma árvore e gavetas e depósitos distribuídos em poucos metros quadrados ao final de uma calçada. Tudo organizado pelas próprias mãos. 

Morando na rua há oito meses, tudo começou quando ele saiu da sua cidade natal, no município de Campo Maior, para deixar para trás um conflito familiar e recomeçar sem nenhum recurso ou apoio na capital piauiense. "Minha mulher se envolveu com outra pessoa, preferi sair de casa. Lá deixei meu filho, minha família, tô aqui lutando para me virar", explica enquanto mostra a foto da ex-esposa e do filho pendurada em um dos galhos da árvore.

Com a venda de água mineral e a ajuda de desconhecidos, aos poucos, Antônio vai levando a vida em busca de novas perspectivas. "Quero poder alugar uma casa, sair daqui, não durmo direito por causa do perigo. Já fui assaltado. Hoje consegui, com um vizinho aqui da proximidade, deixar minhas roupas guardadas. A água que compro para vender fica em outra casa, com o isopor e gelo. Não é fácil, mas estou tentando", confessa.

Afeto com animais

Mesmo a falta de recursos para manter uma vida longe das ruas não tirou a solidariedade de Antônio. No local, ele cuida de quatro gatos, alimentando-os diariamente da melhor forma possível, com ração, água e dividindo a alimentação que consegue para si.

O afeto que é destinado aos animais falta para o filho, uma saudade constante. "Sinto muita falta dele. Mas ligo toda semana e ele sempre pergunta como eu estou, não quero que ele saiba como vivo aqui. Só digo que estou bem", relata.

Escondendo a situação dos familiares, Antônio busca formas de recobrar o controle da vida. Muito ativo, não passa um dia sem organizar o espaço que hoje chama de casa. Aos 42 anos, ele afirma não ter imaginado passar por uma situação tão delicada, mas não perde as esperanças. “A gente tem que ter forças para continuar. Eu tenho todos os dias”, finaliza.

Por: Glenda Uchôa - O DIA
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