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Psicóloga explica efeitos da Cultura do Estupro na percepção da violência

Cultura machista faz com que vítimas de estupro não reconheçam violência, diz psicóloga

30/05/2016 12:41

Não existe o "grande monstro estuprador". Na maioria dos casos de violência sexual, os perpetradores são considerados "homens normais", que não acham que cometeram um ato violento. Mas o que exatamente eles pensam?

É o que investiga a brasileira Arielle Sagrillo Scarpati, de 28 anos, que faz doutorado em psicologia forense na Universidade de Kent, na Inglaterra.

"Quando você olha a literatura sobre o tema, observa que a maioria dos casos de estupro é cometida por agressores que não têm nenhuma patologia. A gente tem essa noção de que o estuprador é um monstro, um psicopata. Mas na verdade esses homens são o que chamamos de normais, em geral tidos como pessoas boas, salvo raras exceções. Isso sempre me chamou muito a atenção", disse à BBC Brasil.

Caminhada das Flores repudia abuso e agressões contra as mulheres. (Foto: Wilson Dias/ Agência Brasil/ Fotos Públicas - 29.05.2016)

Scarpati tenta entender o que faz com que pessoas que cometem violência sexual não reconheçam seus atos como violentos. E aponta valores culturais e os "mitos do estupro", tanto no Brasil quando na Inglaterra, como os principais responsáveis.

"A maioria das pessoas acha que estupro envolve o monstro, o beco escuro, a mulher jogada no chão ensanguentada. Por isso, em muitos dos casos, a própria vítima não reconhece o que sofreu como violência."

Segundo a pesquisadora, uma cultura machista também dificulta o acolhimento das vítimas pela polícia britânica, que enfrenta críticas de culpabilização da vítima semelhantes à brasileira.

BBC Brasil: Quais são as principais diferenças e semelhanças que você encontrou entre Brasil e Inglaterra quando se trata de violência sexual?

Scarpati: Enquanto no Brasil há uma cultura machista mais geral, que abarca qualquer faixa etária, aqui na Inglaterra o fenômeno parece mais forte nas universidades, que é o que eles chamam de "lad culture".

Para fazer parte de um grupo na universidade e ser considerado um bom membro, é preciso fazer certas coisas. Isso inclui muita bebida e, frequentemente, abusar de mulheres em festas. Há uma quantidade de violência sexual altíssima e muitos desses casos não são reportados. Isso dá a impressão de que a violência sexual ocorre menos.

Tanto na Inglaterra quanto no Brasil a polícia ainda não está preparada para acolher bem essas vítimas. Aqui os casos andam mais rápido, os serviços funcionam melhor, mas o acolhimento inicial ainda é ruim.

(Foto: Wilson Dias/ Agência Brasil/ Fotos Públicas - 29.05.2016)

Trabalhei como voluntária em um centro de acolhimento de vítimas aqui em Canterbury e muitas me diziam que preferiam não denunciar para não terem que ouvir perguntas como "que roupa você estava usando?", "será que você não provocou?" e "você vai denunciar mesmo, não quer voltar para casa e pensar melhor?'".

Por outro lado, o debate a respeito do assunto acontece há mais tempo por aqui e existe um sistema um pouco mais bem estruturado para dar assistência à vítima e tratamento ao agressor. Eu vejo muito, por exemplo, uma preocupação com o tratamento dos agressores - o que, infelizmente, a gente ainda negligencia no Brasil.

Além disso, aqui há diferenças culturais como menor desigualdade de gênero, índices menores de violência e maior participação feminina no mercado, que se refletem na maneira como a violência é perpetrada aqui. Por exemplo: você não vê --ou vê raramente-- mulheres sendo "puxadas pelo braço ou pelo cabelo" em uma festa, ou cantadas nas ruas.

BBC Brasil: A comoção causada pelo caso da adolescente estuprada por diversos homens no Rio pode significar que a sociedade brasileira esteja menos tolerante à violência sexual?

Scarpati: A gente está começando a olhar para o fenômeno da violência sexual agora. Ainda não enxergamos muito do que acontece.
Quando você tem casos envolvendo menores, tem a atenção das pessoas. Quando há casos envolvendo muita brutalidade, eles também chamam a atenção do público de modo geral, despertam indignação.

Mas para além desses casos, que envolvem grupos muito particulares, temos uma série de casos de violência que acontecem cotidianamente. E nós negligenciamos tanto a vítima quanto os diferentes tipos de agressores.

Esse caso agora é definitivamente fora da curva. A violência contra a mulher no Brasil tem uma roupagem muito diferente. São principalmente mulheres que são vítimas de violência e sequer são capazes de nomear como violência aquilo que elas vivenciaram.

BBC Brasil: A lei brasileira considera que quaisquer "atos libidinosos" não consentidos são crime de estupro. Por que existe essa dificuldade de reconhecer a violência sexual em suas diversas formas?

Scarpati: Porque a gente tem uma ideia na cabeça sobre o que é violência sexual, quem é o agressor e quem é a vítima.

São estereótipos que chamamos de "mitos de estupro": o agressor é um monstro, a vítima é aquela que estava andando sozinha pelo beco escuro à noite, é atacada e deixada no chão ensanguentada ou é aquela que estava se vestindo de maneira tida como vulgar, que estava bêbada ou que "provocou".

Qualquer coisa que fuja desse padrão a gente tem muita dificuldade de reconhecer. Por isso, em muitos dos casos, a própria vítima não reconhece o que sofreu como violência e o agressor também não reconhece.

É comum que as pessoas não entendam como violência sexual uma situação de estupro dentro do casamento, por exemplo. Mas o que caracteriza o estupro é ausência de consentimento. Se a mulher está com o marido e diz não, mas ele força e o sexo acontece, isso é estupro.
É comum que as pessoas não entendam como violência sexual uma situação de estupro dentro do casamento, por exemplo

Não interessa se os dois foram para o motel, se estavam pelados. Se a mulher diz: 'não, para'. E o homem continua, isso é estupro. Mas muitos não acreditam.

E isso não é algo apenas dos homens. Homens e mulheres acreditam nesses mitos e os endossam.

Fonte: UOL
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