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Pacientes são flagrados amarrados e dopados em hospital psiquiátrico de MT

Pacientes ficaram amarrados em macas quase o dia inteiro. Relatório afirma que pacientes mulheres foram 'desconfiguradas de sua condição de seres humanos'.

27/10/2017 18:45

Pacientes amarrados, dopados, falta de estrutura e banheiros sem porta foram algumas das irregularidades encontradas durante uma inspeção no Hospital Psiquiátrico Centro Integrado de Assistência Psicossocial (CIAPS) Adauto Botelho, em Cuiabá. A vistoria foi feita por peritos do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), ligado ao Ministério dos Direitos Humanos, entre os dias 13 e 21 de julho de 2017.

A inspeção também foi feita no Centro de Atendimento Socioeducativo (Case) de Sinop, a 503 km de Cuiabá.

De acordo com o levantamento, o Hospital Adauto Botelho não preza pela individualidade dos pacientes, tampouco a um tratamento dentro dos parâmetros legais. Para o MNPCT, o local ‘funciona, em outras palavras, como um grande depósito de pessoas – acomodadas da maneira possível, sem qualquer tipo de individualização’.

Fiscais flagram pacientes amarrados e dopados no Hospital Psiquiátrico Adauto Botelho, em Cuiabá (Foto: MNPCT)

Em geral, a equipe classificou o tratamento oferecido no local como 'cruel, desumano e degradante'.

O hospital público, atualmente com 70 pessoas, foi fundado em 1957 e é ligado à Secretaria Estadual de Saúde do Mato Grosso (SES-MT). Na instituição, é feito o acolhimento de pessoas em crise (encaminhadas pela rede de saúde e que, em tese, ficam em observação por um período curto de tempo) e moradores que estão em longo tempo de internação. No momento da vistoria haviam 65 pessoas internadas na instituição.

Pacientes amarrados

A situação mais grave encontrada pela equipe ocorreu na ala destinada às pessoas em acolhimento de crise. Conforme o relatório, era por volta de 9 horas e a equipe se deparou com duas pessoas (um homem e uma mulher), amarradas pelo peito, mãos e pés, dormindo em função do uso de medicação.

“A justificativa apresentada por uma das enfermeiras para o uso daquela contenção física e química seria o fato dos pacientes estarem agitados. A profissional afirmou, contudo, que aquela situação seria provisória e que ambos sairiam daquelas condições nos próximos minutos”, diz trecho do documento.

A mesma equipe retornou no período da tarde e encontrou os mesmos pacientes, além de um terceiro paciente, nas mesmas condições vistas pela manhã.

“Ao retornarem, já por volta das 14h30, a equipe se deparou com a manutenção da situação encontrada no início da manhã: os mesmos pacientes amarrados, sob efeito de medicamentos – aparentemente, incapazes de esboçar qualquer reação agressiva – além de outra mulher, que chegara para internação no período da manhã, totalizando, portanto, três pessoas nessas condições. Uma das internas, embora tenha despertado com a chegada da equipe na sala, imediatamente voltou a dormir. Já o homem – que aparentava ser uma pessoa idosa –, estava acordado”, pontuaram os fiscais.

A equipe iniciou um diálogo com esse homem. Ele relatou que teria sido internado no dia anterior e que, em razão de estar “bravo”, por não aceitar a internação involuntária, ele teria sido amarrado e medicado. O paciente disse, ainda, não saber o motivo pelo qual, um dia depois de sua chegada, ainda permanecia com peito, pés e mãos amarrados, uma vez que não teria manifestado qualquer reação agressiva.

Após esse diálogo, a equipe foi ao encontro da médica plantonista para questionar o motivo clínico para a manutenção de pessoas amarradas por período tão largo de tempo.

A médica de plantão disse que não teria sido a responsável por designar a ‘contenção mecânica’ e química daquelas pessoas, e que o procedimento teria sido realizado no plantão do dia anterior, atestando o longo período no qual aquelas pessoas estavam sendo mantidas amarradas.

A profissional não soube justificar clinicamente os motivos pelos quais seria necessário manter os pacientes, até aquele momento, amarrados. Disse que a justificativa apresentada pelo médico anterior seria o suposto estado de agitação daquelas pessoas e que, a partir dessa informação, não teria revertido a decisão de mantê-los contidos.

A inspeção identificou que a instituição apresenta uma infraestrutura precária – retratada, por exemplo, na pouca circulação de ar nos quartos, na inexistência de chuveiros na maioria dos banheiros e na utilização de macas como cama.

“Foi possível constatar, ainda, uma naturalização do descaso para com as pessoas internadas, até mesmo com ausência de portas nos banheiros dos três blocos visitados. O nível de exposição, somado à vulnerabilidade das pessoas que ali estavam, é grave”, alerta o relatório.

Vulnerabilidade de mulheres

Ao conversar com profissionais do hospital, a equipe percebeu que não há na instituição um tratamento que respeite especificidades de gênero. Toda a ala feminina é pintada de cor mais clara, em tom mais rosado, enquanto que a ala destinada aos homens é pintada de verde, o que identificaria as mulheres a uma feminilidade docilizada.

“Sendo que para as mulheres é ofertada uma aula de culinária e um salão de beleza, enquanto que para os homens não há a possibilidade de realização dessas atividades. Nesse sentido, atribui-se às mulheres, ou tarefas típicas da vida doméstica, ou aquelas vinculadas à aparência física, reforçando papéis tradicionais de gênero que deveriam ser questionados e não reforçados”, salientou o relatório.

No dia da vistoria, a equipe percebeu que a presença de profissionais homens é comum na ala feminina, inclusive de homens que não trabalham na instituição. Os banheiros femininos não têm portas, o que as deixam em situação constrangedora, de humilhação e extremamente vulneráveis a sofrer violência sexual, na avaliação dos profissionais.

“No dia da visita havia alguns homens, responsáveis por reparos no hospital, circulando livremente na ala destinada às mulheres, sendo que elas usavam o banheiro e, portanto, ficavam nuas diante desses homens. Esta situação era tratada como completamente normal, sem qualquer tipo de preocupação ou estranhamento, por parte dos servidores do hospital. Esta naturalização pode demonstrar uma propensão à ocorrência de violência sexual e, até mesmo de estupro”, alertou a equipe.

Ao final do relatório, a equipe diz que “o que pode ser percebido é que essas mulheres foram desconfiguradas de sua condição de seres humanos dentro do hospital psiquiátrico Adauto Botelho, seus corpos estavam à disposição da instituição, como se não mais lhes pertencessem”.

Outro lado

O diretor do Hospital Adauto Botelho, João Botelho, disse ao G1 que algumas melhorias e reformas já estão sendo feitas na unidade. Um processo de licitação para uma reforma está em andamento. A respeito da situação de pacientes amarrados ou dopados, ele alegou que os profissionais seguem um protocolo de ‘contenção’.

“Há necessidade de preservar a estrutura física do paciente, mas isso tudo tem um protocolo. Existem imprevistos, tem pessoas que precisam de um olhar diferenciado e uma responsabilidade diferenciada. São pessoas totalmente vulneráveis”, comentou Botelho ao G1.

Botelho afirma que os pacientes encontrados amarrados, no dia da fiscalização, foram contidos em horas determinadas e não em um longo período de tempo. Em relação à ausência de portas, o diretor garantiu que o problema já está sendo resolvido, com a instalação das estruturas sem fechaduras.

“O problema é que são poucas unidades terapêuticas [para atender os pacientes], as famílias não os aceitam mais e [os pacientes] acabam morando no Adauto por anos. Também temos problema em devolver os pacientes, as prefeituras não se comprometem em recebê-los de volta”, criticou o diretor. A unidade recebe pessoas da capital e do interior do estado

Fonte: G1
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