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Preconceito e lágrimas: a caminhada do futebol feminino contada por elas

Cristiane, Tamires, Bruna Benites e Marcia Tafarel relatam como superaram adversidades em busca do sucesso e ajudaram a abrir caminho às meninas de hoje

08/03/2017 10:53

Laura Spenazzatto tem 18 anos. Atualmente, realiza o sonho de ser jogadora de futebol e está prestes a ser federada, ou seja, virar oficialmente profissional. A caminhada teve seus percalços. Aos sete anos, na pequena Iraceminha (SC), descobriu que jogar na rua com os meninos e não ficar com as "patricinhas" e bonecas a encantava mais. Aos 13, viajava para os treinos de futsal em Maravilha, ali pertinho de casa. A trajetória continuou. Em 2015, a mudança para Caçador para atuar no Kidermann. Em 2016, o chamado do Iranduba, seu clube atual, e a ida para Manaus. O cenário está longe de ser o ideal, mas as barreiras já quebradas por outras gerações proporcionaram que Laura, hoje, possa continuar trilhando um caminho com mais tranquilidade e menos preconceito, este que por vezes teima em voltar. E essas gerações não tiveram trabalho fácil.


Laura Spenazzatto, 18 anos, jogadora do Iranduba (Foto: Arquivo Pessoal)

- Chegar em casa chorando porque era ofendida. Quando você é criança você sente muito. Quando adulto você releva. Só porque eu estava na rua descalça jogando com os meninos era ofendida. Essa parte foi triste. As outras acabei aprendendo a lidar com elas. Essa parte marca muito. Chegar em casa chorando por ser ofendida.

O relato acima é de Cristiane, atacante da seleção brasileira e do Paris Saint-Germain. A jogadora lembra que, quando criança, teve que tapar os ouvidos para o preconceito. No interior de São Paulo, insistiu apesar do choro constante ao voltar para casa depois das ofensas. A persistência a colocou no topo e o nome da modalidade do país além das fronteiras. Levou a atleta a ser a maior artilheira do torneio de futebol dos Jogos Olímpicos entre homens e mulheres. Levou Laura, a menina de 18 anos, a poder contar aos amigos, com orgulho, que é jogadora de futebol.


Cristiane é a atual artilheira do torneio de futebol olímpico (Foto: Agência Reuters)

Imagine que Cristiane tem 31 anos. Pois Marcia Tafarel tem 48 anos. Há 30 anos, a ex-meia da seleção brasileira buscava a chance de ser uma jogadora de futebol. Trinta anos. A dificuldade já começava em casa por resistência de parte da família, mas nunca da mãe e do avô.

- A minha primeira grande dificuldade foi a aceitação da família. Minha mãe dava total apoio. Minha mãe é baiana e tudo que serve para quebrar tabus ela apoiava. Ela achava que a mulher tinha capacidade de fazer qualquer coisa que ela quisesse. Quando eu comecei a jogar na rua, minha família, italiana, não achava que podia jogar na rua com os meninos e sim cuidar da casa, ficar com as meninas. A família do meu pai italiana tradicional não aceitava eu jogar com meninos pois achava coisa masculinizada. Minha vó não gostava. Meu vô sentava na mureta para assistir. Meu vô e minha mãe eram grandes incentivadores. Mas o resto da família não aceitava.

Se o tempo possibilitou a Laura poder exercer de forma profissional e sem críticas sua profissão, Tafarel não teve tarefa fácil. Na foi somente na infância a barreira. As mulheres que optavam por atuar recebiam ofensas e gritos de desaprovação. Ela conta que foi levada pela mãe ao Bento Atlético Futebol Clube aos 13 anos para um teste. Ela era a única menina. As colegas que praticavam, em sua maioria, já eram casadas e isso balizada quem tinha mais abertura para poder praticar profissionalmente. 

- Quando eu passei a jogar competitivamente veio o aquele preconceito geral de você escutar as pessoas do lado de fora gritando “vai mulher macho”. Infelizmente o preconceito ainda existe, mas com outras palavras. Eles sempre acham que menina que joga vai virar homossexual. Por isso o futebol feminino tem uma barreira grande no Brasil e é um grande atraso. Não jogo mais, mas sou treinadora e ainda escuto a pergunta de como consigo me sustentar trabalhando com futebol feminino - diz ela, que atualmente é técnica de futebol nos Estados Unidos.

Os obstáculos de outrora foram amenizados. Tafarel acredita que o preconceito diminuiu, mas ainda é algo presente. Como ela conta, as meninas, em sua grande maioria, ao menos podem escolher o que desejam praticar na escola. 

- Em termos de incentivo familiar melhorou. O incentivo familiar hoje é maior. Antes você precisava quebrar tabus. Hoje a família dá mais opção da menina praticar o esporte que ela gosta, acho. Lógico que há famílias que vão contra, mas a grande maioria incentiva. Em termos de cultura, ainda existe essa a barreira de menina jogando futebol, um preconceito cultural que é mais difícil de quebrar. Mudar a mentalidade é difícil. Esse preconceito não é cultural, por exemplo, nos Estados Unidos.

Tamires é a lateral esquerda da seleção brasileira e joga no Fortuna, da Dinamarca. Para chegar ao ápice, ela não venceu somente o preconceito envolto na modalidade. Atualmente com 29 anos, engravidou aos 21 anos. Escutou de pessoas que nunca mais voltaria a ser atleta pelo simples fato de ter tido a felicidade de conceber Bernardo, seu filho. As frases quase a derrubaram, mas, com a ajuda do marido César, chegou com méritos onde desejava em sua carreira.


Tamires com o marido César e o filho Bernardo (Foto: Instagram)

- Eu lembro claramente. Quando descobri que estava grávida e as pessoas descobriram sem ser minha família. Muitos falaram para mim: "Acabou o futebol para você". Ouvi da boca de terceiros que o futebol tinha terminado para mim. Mesmo que eu acreditasse em mim eu ainda não era madura o suficiente. E por eu ser jovem eu absorvi essas coisas e por alguns momentos acreditei que era verdade. Depois, vi que não era - diz Tamires.

 Capitã da seleção brasileira no primeiro torneio sob comando da técnica Emily, em dezembro, Bruna Benites ressalta que um fator foi decisivo para que seguisse adiante mesmo com críticas de quem não via com bons olhos o futebol feminino há alguns anos: orgulho. Quando ela percebeu que a mãe a admirava pelo seu trabalho, foi suficiente para que não desistisse do sonho.

- A época mais difícil era na escola. Na educação física, já separavam. Meninos jogavam futebol e meninas só vôlei e handebol. Se as meninas queriam jogar tinham que jogar com meninos isso se o professor deixasse. Eu acabava não jogando porque ficava sem jeito de ficar só uma menina no meio dos meninos. E todos no colégio falavam: “Ela joga com meninos”. E quando a gente é criança a gente se abala. Minha mãe me apoiava. Quando percebi que ela sentia orgulho eu pensei que não precisava me preocupar com outros. Eu sinto orgulho do que faço.

Bruna Benites com a seleção campeã da Copa América 2014 (Foto: Arquivo pessoal)Bruna Benites com a seleção campeã da Copa América 2014 (Foto: Arquivo pessoal)

Laura respira mais aliviada. Veste a camisa, calça a chuteira e segue com orgulho sua carreira. Mas o preconceito continua naqueles que ainda defendem que o futebol não é esporte para mulher. Naqueles que acreditam que lugar de mulher não é onde ela quiser. Pois todas essas mulheres acima ousaram dizer que lugar de mulher é sim onde quiser. Cristiane, Marcia Taffarel, Bruna Benites e Tamires são só uma parte do universo feminino que luta diariamente para que o direito seja de todas e todos igualitariamente. A luta nunca deixará de vir carregada de esperança.

- Ninguém vai conseguir mudar o pensamento de todo mundo. Sempre vai ter quem pense que menina não tem que jogar futebol. Mas já deu uma boa melhorada. Vai ficar ainda melhor – aposta Laura. 

Fonte: Globo Esporte
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