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Resenha: Cachorro Velho, de Teresa Cárdenas

Obra retrata memória da escravidão em Cuba

01/02/2016 21:06

“Um escravo era apenas um pedaço de carne malcheirosa e mais nada. Um negro era uma besta de carga, um bicho, um bruto, um ladrão, uma alimária, um saco de carvão... Apenas uma peça” (p. 23)

Cachorro Velho sempre foi escravo e, agora, em sua velhice, era porteiro da velha fazenda em que sempre trabalhou, onde passou toda a sua vida em meio aos canaviais.

“Havia sido ágil, forte, montava os cavalos de um salto, mergulhava até o fundo do rio. Agora era só um ancião pensando em coisas do passado” (p. 44)

Com a velhice avançando, passa os dias em meio a lembranças de seu passado, tentando descobrir qual o seu verdadeiro nome; lembrando histórias que os amigos contavam sobre a África, o continente tão distante de onde sabe ter raízes profundas, que de tão belo nem parecia ser real; tentando lembrar como era o rosto de sua mãe, de quem nunca esqueceu o cheiro do peito.

“O ancião apertava os olhos até sentir dor, mas não conseguia se lembrar de absolutamente nada. Tentava resgatar o rosto e o odor amado do meio de tantas lembranças que torturavam sua mente. Em vão. Depois de tanto tempo e sofrimento, sua velha cabeça parecia esquecer tudo” (p. 68)

Dividido em pequenos capítulos que acompanham o exercício da memória de Cachorro Velho, a continuidade e a ruptura de suas lembranças, o idoso passa a limpo, entre lembrar e esquecer, os rituais entre os negros; a magia da natureza; a perda dos companheiros para o suicídio e para a violência; e o quanto suas vidas sempre dependeram do patrão, o qual considerava mais poderoso que Deus.

Certo dia, Cachorro Velho se depara com uma pequena negra em fuga, Aísa, uma criança de 10 anos, cuja vulnerabilidade e coragem o remetem à sua própria juventude, em que sentia desejo de fugir, mas na mesma medida o solapava o medo da morte e dos castigos. E sentia o mesmo temor por Aísa, que, em fuga, estaria vulnerável aos cães e à morte, mas, ainda assim, a fuga da menina é capaz de revolucionar a vida do velho já à beira da morte, que acompanhara a luta de tantos outros escravos para chegar ao Quilombo El Colíbrio, cuja distância e aura libertadoras fazem-no parecer inatingível, mas mesmo assim os escravos não desanimavam de tentar alcançá-lo.

Mais que uma estória descritiva e repleta de pequenos acontecimentos que permearam a vida de um escravo, esse romance é uma tentativa de reconstrução da história de uma nação de negros, cuja própria identidade hoje pode ser reconstruída por meio das narrativas autorrepresentativas, dado que a autora, a cubana Teresa Cárdenas, é descendente de escravos cubanos.

Para o historiador Jacque Le Goff, a memória é muito mais que uma conquista, é um instrumento de poder, donde se pode remontar à construção da identidade de um povo cujo passado fora usurpado, e que, neste caso, por meio da literatura, pode-se, enfim, criar seu próprio patrimônio, resistência e identidade.

Teresa Cárdenas é um dos maiores nomes da literatura cubana. Este livro venceu o Prêmio Casa de las Américas.

Por: Luciana Lís
Revisão: Ceiça Souza

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