Portal O Dia - Notícias do Piauí, Teresina, Brasil e mundo

WhatsApp Facebook Twitter Telegram Messenger LinkedIn E-mail Gmail

Pequenas grandes mentiras, de Liane Moriarty

Com uma escrita muito bem fluida e com boas emendas de trama, os livros de Moriarty têm muito drama e finais nem mesmo próximos de serem felizes.

22/07/2015 13:20

Liane Moriarty (foto abaixo) está em quase todas as prateleiras com seu best seller “O Segredo do Meu Marido” (título bem brega, né?), dominando a sessão da chamada “chick-lit” (as aspas são porque eu desprezo do fundo da alma esta expressão-ninguém julga livros lidos predominantemente lidos por homens como “dudeslit” ou algo assim, mas isso é tema para outro texto). 

Mas a autora não corresponde à expectativa de grandes histórias de amor que fazem sonhar, em que tudo corre às mil maravilhas. Com uma escrita muito bem fluida e com boas emendas de trama (algo que, para mim, é fundamental para considerar um bom prosador): seus livros têm muito drama, e finais nem mesmo próximos de serem felizes. 

O segundo livro de Moriarty, Pequenas Grandes Mentiras, me desanimou pela capa e pelo título (ela é meio ruim nos títulos, constatei), mas a leitura te pega ao ir descrevendo, aos poucos, a vida de três mulheres, de modo bem parecido com a estrutura de seu primeiro livro. As personagens principais agora são Madeleine, Jane e Celeste, três mulheres que têm os filhos matriculados na escola pública de Pirriwee. 

Já no começo do livro, ficamos sabendo que ocorreu um assassinato após muitos ânimos se exaltarem nas dependências da escola durante uma festa, a “Noite do Concurso de Perguntas e Respostas”, mas até bem próximo do final da trama, não se sabe quem morreu ou quem é o morto-o que é descoberto, ao final do livro e ao mesmo tempo, junto com outra revelação ainda mais surpreendente. 

Entre os capítulos, há trechos dos depoimentos colhidos após o crime, já na delegacia. Nestas falas, geralmente de personagens secundários, ficam claras as opiniões (muitas vezes muito equivocadas) que os pais dos alunos da escola de ensino infantil de Pirriwee tem uns sobre os outros. E como algo visto de fora pode parecer mais brilhante e belo do que realmente é, e vice-versa. Chamou minha atenção a personagem Samantha, muito espirituosa e outsider em relação às outras mães, “louras de corte Chanel ou wanna bees”: ela sempre tem um comentário espirituoso para cortar comentários maldosos e preconceituosos de outras pessoas. Acredito que possa ser uma inserção de eu-lírico de Moriarty no livro, como tantos autores costumam fazer. 

Violência contra a mulher sempre foi um tema caro para mim como feminista. Duas das três protagonistas sofrem violência, e o livro é bem legal para ilustrar a diferença entre violência contra a mulher e violência doméstica e familiar contra a mulher, termos que ainda confundem muito os próprios operadores do direito, que dirá os leigos no assunto.

 É bem pungente ler suas reações e ver nelas situações cotidianas de violência contra a mulher, mesmo que as personagens sejam de um país desenvolvido em que supostamente isso não deveria acontecer. Uma das coisas mais interessantes no livro é como a autora explica sobre violência endêmica contra a mulher e o ciclo da violência doméstica com trechos de pensamentos das personagens. Liane cria empatia do leitor com as três mulheres, e fica muito difícil agir com o pensamento senso comum de: “não larga ele porque não tem vergonha na cara”. Com as digressões psicológicas de cada uma das mulheres, entende-se que a questão é muito mais complexa que isto. Mas nem por isso irresolúvel. 

“Mas cada vez que não o largava, ela lhe dava permissão para fazer aquilo de novo. Sabia disso. Era uma mulher culta, com opções, lugares para ir, família e amigos que a apoiariam, advogados que poderiam representá-la.” 

O pensamento de que “poderia ser pior”, frequente nesse tipo de vítima, também aparece no livro como reflexão. Mas ele é bom pai. Mas é bom marido quando não me bate. Mas nem é com tanta força. E assim o ciclo se fecha. 

Mas só porque “poderia ser pior” não significa que você tem que aguentar o que é ruim. A resistência também é mostrada no livro nas consultas com a psicóloga e na elaboração de um plano de fuga. Apesar de estar presa física e psiquicamente em um ciclo de violência, a resistência acontece do jeito que pode: discreta, em detalhes. Acreditar em uma passividade no sem resistência no afã de tentar protegê-la muitas vezes desempodera ainda mais a vítima. 

O mais adequado é lhe dizer: “nossa, quando você fez isso, que parece tão pequeno, você demonstrou sua força: prova que você é capaz de enfrentar isso”. 

“Seus hematomas podiam sempre ser escondidos com uma gola rulê, mangas ou calças compridas. Ele nunca encostara um dedo nas crianças. Os meninos nunca viam. Podia ser pior. Ah, muito pior. Ela tinha lido artigos sobre as verdadeiras vítimas de violência doméstica. Aquilo (sim) era terrível. Era real.”

 Enquanto isso, uma das mulheres lida com o segundo casamento e com a adolescência da filha de sua primeira união. Muitas mágoas passadas e muitas experiências ruins são levantadas, mas no fim as coisas se arranjam melhor do que se a personagem realmente tivesse tentado consertar as coisas da sua maneira-verdade seja dita, sempre com gritos, perda de controle e ameaças. O lado bom dessa mãe é ela expor seus sentimentos humanos com crueza, e em suas digressões não chegar nem perto da pessoa compreensiva e tranquila que se espera de uma figura materna. Porém, tudo o que ela faz, mesmo errado e excessivo, é porque ama e quer proteger seus filhos. Mais mulheres assim são necessárias na literatura (há muita dicotomia entre a mãe heroina e a mãe desumana; e todos sabemos que a vida não é nem de perto assim**). 

Outra das personagens, cujo filho é acusado de praticar bullying contra uma coleguinha (o que causa alvoroço e até um polêmico abaixo-assinado), passou por uma experiência sexual violenta e bizarra, cujas consequências ela enfrenta até hoje: distúrbio alimentar, pesadelos, obsessões. O que ela mais quer é entender por quê ela, e por quê daquela forma. Seria uma vítima perfeita? Aparentava ser tão “tola” como realmente foi? Aqui, temos uma ótima demonstração de como o processo de auto culpabilização entranha-se na vítima de violência sexual, os vários “e se” que a sociedade impõe e que de um jeito ou de outro, acabam internalizando-se na vítima. Um homem disse-lhe que era ela feia e irrelevante, e dadas as circunstâncias, o tom ameaçador e toda a violência, ela acreditou. E ainda hoje luta para desacreditar. 

“Racionalmente, sei que não sou feia, sou perfeitamente aceitável. Mas me sinto feia, porque um único homem me disse que eu era, e isso me tornou feia. […] É patético.” 

O desfecho do livro pode decepcionar alguns, mas eu interpretei como a opinião da escritora sobre homens violentos: raramente, mas só em casos muito raros mesmo, há recuperação. Homens com comportamentos abusivos não mudam (dada toda conivência e tolerância da sociedade com atos misóginos), apenas aprendem a camuflar melhor seus destemperos, para assim manterem a parceira em seu poder ou fazerem novas vítimas. Soa meio Dr. Gregory House, né? Mas a moral da história acopla as duas máximas dele mesmo: as pessoas nunca mudam e todo mundo mente. Queria também acreditar em algo diverso, mas o que vejo todos os dias me convence a ter a mesma opinião que Moriarty. Resta esperar que os homens que não mudam continuem sustentando suas mentiras e não machuquem mais ninguém. 


*Se você é vítima de violência doméstica ou conhece alguém que seja, denuncie, disque 180. É anônimo. 

** Sobre maternidade, embora eu entenda pouquíssimo (sou filha ainda um pouco longe de ser mãe, embora sonhe), sugiro a leitura do “Breviário das Horas”; sensível, pontual e sem maquiagens desnecessárias sobre a maternidade: https://www.facebook.com/pages/Brevi %C3%A1rio-das-Horas/617016218323812?fref=ts


Por Lara Matos

Estudante de direito, do signo de sagitário com ascendente em aquário, lua em virgem e meio-de-céu em escorpião (adoro astrologia).Mantenho uma página no Facebook com o que eu escrevo: http://on.fb.me/1Gc3ocJ

Seja legal comigo ou vai virar o personagem mais chato de um dos meus romances. =P

Mais sobre: