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O erro de Descartes: emoção, razão e cérebro humano

O livro é um exemplo de que obras científicas também podem oferecer um texto agradável, prazeroso, sentindo com inteligência e pensando com emoção, combinando conceitos que tocam até a dimensão literária

30/07/2015 10:51



Uma das atribuições mais caras a um pensador, diga-se dele filósofo, cientista ou poeta, é a de romper com as concepções que se solidificam e moldam o chão seguro, mas não inexorável das certezas. Provar, ou, se não houver pretensões “científicas”, mostrar que existe outro lado e ângulo para vermos como o mundo e a realidade humana são mais complexos do que as verdades que aprendemos e repetimos querem sugerir: isto é o que caracteriza boas obras, e é isto que encontramos em O erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano.

  Trata-se de um livro de medicina? Sim, fora escrito por um neurologista e professor de medicina. É um livro de filosofia? Também. Dialoga com cânones do pensamento ocidental e com filósofos da mente contemporâneos (Descartes, Spinoza, Kant, Dennet, Searle...). Psicologia? Não há como lermos sobre emoção, razão e cérebro sem sermos levados para o universo da “psiché”, da alma, daquilo que nos torna humanos. E um dos aspectos mais fascinantes do livro é que não se precisa ser filósofo, médico ou psicólogo para entendê-lo, ainda que minimamente. Embora tenha que utilizar a terminologia científica de sua área (diencéfalo, mesencéfalo, cíngulo e outros nomes bonitos), Damásio consegue escrever de forma que o leitor leigo entenda qual foi o “erro” de Descartes.

  É sabido que René Descartes, “pai” da filosofia moderna, revolucionou não só a matemática (lembremos da geometria analítica), mas o pensamento científico como um todo. No que se refere à filosofia, Descartes é o maior nome do racionalismo, doutrina que postula a razão como a única fonte capaz de fornecer uma base segura para o conhecimento, e que também a coloca como verdadeira realidade de nosso ser (“penso, logo existo”). Se pensarmos que a influência de Descartes se prende às disciplinas filosóficas e científicas, o livro de Damásio é uma demonstração de que estamos errados, e erramos com Descartes.

  É comum aconselharmos e sermos aconselhados: “fique frio”, “use a razão”, “não se deixe levar pela emoção”. Tudo isto é resquício da separação entre alma/razão e corpo/matéria, que vem das origens da filosofia grega, e que teve em Descartes seu maior propagador na modernidade. Questionando este paradigma com base em estudos de casos, Damásio mostra que racionalidade e emoção não são instâncias separadas, e que a ausência de sentimento, principalmente em determinadas ações, pode representar um prejuízo para a racionalidade. Os casos de Phineas Gage (trabalhador da Estrada de Ferro Rutland & Burlington que teve seu cérebro atravessado por uma barra de ferro em um acidente) e Elliot (paciente de Damásio que teve que retirar uma pequena parte do tecido cerebral por conta de um tumor) mostram que danos na parte do cérebro responsável pelas emoções e sentimentos provocam uma séria perda da racionalidade necessária para tomar decisões na vida social.

  O livro é um exemplo de que obras científicas também podem oferecer um texto agradável, prazeroso, sentindo com inteligência e pensando com emoção, combinando conceitos que tocam até a dimensão literária, como “paisagem do corpo” e “biologia da razão”, além do que contribui para reconsiderarmos a distinção amplamente questionável entre biologia e cultura.  


André Henrique M. V. de Oliveira é autor do livro "Sem pé nem cabeça: esparsos escritos sobre coisas algumas" e de alguns artigos publicados em revistas de filosofia. Integra o projeto musical "Corpus Conti e o Neurônio Espelho".

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